Extraído de Azevedo, Cláudio; A Caminho no Ser: Uma Visão Transpessoal
da Psicologia no Yoga S?tra de Pat?ñjal?, Editora Órion, Fortaleza, 2.007
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“Chegará o dia em que alguém perguntará a Shakespeare, ou mesmo a Beethoven, 'e isso é tudo? '”
Aldous Huxley 1:36
Para que vim à existência? Será que foi apenas para comer, beber, e eliminar resíduos? Talvez tenha sido para isso mesmo, ou para apenas respirar e contemplar e mais nada querer. A pergunta vem e a resposta idem, mas essa última é individual e deve ser percebida e compreendida por cada um individualmente. Independentemente de seu objetivo nessa existência, se é que existe algum, o homem é um ser de desejo. Mas sem entrar no mérito do certo e do errado quanto à orientação desse desejo, estamos aqui porque desejamos estar.
Temos um princípio interno que deseja e alguns desejos são universais: o desejo de existir, o desejo de conhecer e o desejo de bem-estar. Respiramos porque desejamos, comemos porque desejamos, bebemos porque desejamos, falamos porque desejamos, calamos porque desejamos, deixamos de comer porque desejamos, deixamos de beber porque desejamos, etc..
Desejar nos é inerente e assim seguimos desejando comida, bebida, ar, saúde, felicidade, bem-estar, etc., e achamos que viemos ao mundo para buscar e possuir essas e outras coisas. É o nosso impulso primordial de fazer: fazemos coisas porque as desejamos. Desejar e fazer nos são inerentes e o próprio não-fazer é um fazer: estou escolhendo fazer e praticar o não-fazer.
Desejamos porque sentimos. São nossas sensações, conseqüências do contato das vibrações provenientes do meio ‘externo’ com nossos órgãos físicos dos sentidos, que impulsionam nossos desejos. Mas como? A maioria das vibrações físicas gera sensações neutras, mas algumas delas geram as sensações de ‘agradável’ ou ‘desagradável’. Ambas as sensações geram respostas físicas, emocionais e mentais que, quase sempre, estão associadas com uma percepção, à qual se dá o nome de ‘sentimento de prazer’, se for uma sensação agradável, ou ‘sentimento de dor’, se for desagradável. É o fato de perceber que nos torna conscientes das sensações.
Essa percepção (sentimentos de dor e de prazer), com a repetição, condiciona o surgimento do desejo de repetir a sensação (apego) ou o desejo de não repetir a sensação (repulsa). Assim, os desejos (apego e repulsa) envolvem a utilização e o processamento da memória, em busca de sensações agradáveis e desagradáveis já sentidas.
O apego aos objetos de prazer nos gera dor ou prazer se os perdemos ou ganhamos, respectivamente, e a repulsa aos objetos de dor gera mais dor ou prazer se entramos ou não em contato com eles, respectivamente. A possibilidade, ou de perder os objetos de prazer e não reavê-los ou de encontrar objetos de dor, leva ao medo e as suas ocorrências levam à raiva. Já o prazer de ganhar um objeto de apego gera mais prazer e apego e a dor de entrar em contato com objetos de repulsa gera mais dor e repulsa, gerando um ciclo vicioso.
O desejo não é uma energia negativa em si, pois traz consigo o poder de realizar. Quando surge o desejo por algo, nossa mente logo se encarrega em formular estratégias para a sua obtenção, utilizando-se do raciocínio lógico e/ou abstrato. Desse processamento consciente surgem as emoções e as ações relacionadas de comportamento emocional e social. As emoções são um amálgama das energias sutis dos desejos com o pensamento intelectual, ou seja, a emoção é a conscientização do desejo. As emoções dão cor e intensificam todas as nossas sensações.
Dessa forma, tudo o que vem a mim é atraído por mim mesmo. Tudo o que me acontece e tudo o que obtenho, de uma forma consciente ou não, foi desejado por mim mesmo e todo desejo é uma ordem mental passada ao Universo. Quando paramos para observar como está a nossa vida verificamos que tudo o que temos foi desejado um dia no passado. Essa é a irrevogável Lei da Atração. Tome cuidado com o que deseja, pois você, com certeza, um dia obterá êxito.
Obtemos êxito quando agimos em prol dele (força de vontade ativa), procurando ativamente formas de concretizar o desejo, e quando desejamos e entregamos (força de vontade passiva) ao Universo (ou a Deus), para que ele mexa com as suas engrenagens da forma que bem entender. Essa segunda forma de desejar é infinitamente mais poderosa que a primeira, principalmente se tivermos paciência em esperar os resultados, aceitando o que tiver que ser aceito para a sua concretização: “se tiveres fé…” Mc 11:22-24.
E assim seguimos desejando e fazendo (e se emocionando), guiados pelos prazeres dos sentidos (hedonismo). Mas à medida que experimentamos as sensações decorrentes do fazer (que inclui o não-fazer) desejando e obtendo objetos, em quantidade e por tempo suficientes, chega um dia em que vem a pergunta de Huxley: “e isso é tudo?” Vamos percebendo que algumas coisas que fizemos (ou que não fizemos) não nos inspiram mais entusiasmo e deixamos de desejar algumas coisas, pois passam a não ter mais sentido. Cessa de existir o encanto que víamos nelas e nos vemos desejando e procurando outros sentidos para a vida e respostas para a nossa pergunta inicial: para que vim à existência?
Se for o prazer que você quer, não se reprima, procure-o com sabedoria. Todos os que obtêm o prazer que viam como meta, constatam-no como insuficiente para preencher a sua natureza mais íntima. Enquanto o homem necessitar de prazeres ele deve procurá-lo com moderação e ética, até que surja a verdadeira renúncia (samvega), pela constatação da insuficiência deles em saciar as ânsias mais íntimas do homem. Pela constatação de que são fúteis, o homem obtém a verdadeira renúncia ao prazer dos sentidos e à busca de poder e sucesso. Renunciar não deveria exigir esforços, mas surgir naturalmente da auto-observação do verdadeiro significado de nossos desejos.
Devemos considerar que alguns desejos são naturais e outros são não-naturais, e, dos desejos naturais, alguns são necessários e outros são não-necessários. Entre os desejos necessários, há aqueles que são necessários à felicidade, há aqueles que são necessários para que o corpo esteja livre de perturbação e há aqueles que são necessários à própria vida. Uma firme compreensão dessas coisas nos torna capazes de tomar cada decisão de aproximar-nos ou afastar-nos de algo levando em conta a saúde do corpo e a tranqüilidade da alma, já que essa é a meta de uma vida feliz… nós só temos necessidade de prazer quando sofremos pela falta de prazer. Quando nós não sofremos, é porque não temos mais necessidade de prazer. Portanto, nós declaramos que o prazer é o começo e o fim de uma vida feliz. Porque reconhecemos o prazer como o primeiro bem, e como algo inato; e é a partir dele que tomamos decisões sobre aproximar-nos ou afastar-nos disso ou daquilo.
Epicuro
O’Connor, Eugene; The Essential Epicurus, Prometheus Books, NY, 1993, páginas 64-65.
Em geral, é após os 30 anos que surge o desejo pelo cumprimento de nossas obrigações para com a família e para com o mundo. Na insuficiência de obter significados nas simples posses materiais, nos vêm esses desejos que na realidade escondem um desejo por fama, poder e sucesso. Se for fama, poder e sucesso o desejo, procure-o com sabedoria, moderação e ética até que, novamente, quando obtidos em quantidade e tempos suficientes, aquela pergunta ressurge.
Começa a nascer então a verdadeira religião (religare), a transformação consciente da vontade de obter em vontade de dar, da vontade de ser servido e reconhecido em vontade de servir e reconhecer. Vem, então, uma outra fase em que desejamos apenas cumprir o nosso dever, em qualquer lugar em que estejamos: o desejo por reconhecimento e gratidão que não mais necessitam nem ser públicos, mas um respeito próprio pelo dever cumprido. Com o tempo o homem percebe que ainda isso não é tudo, que até isso é insuficiente e não lhe basta. Percebe que tudo o que desejou até então era finito e impermanente e começa a despertar o seu desejo pelo infinito em si mesmo.
O homem então percebe que na realidade ele quer existir, quer conhecer e quer se sentir alegre, mas infinitamente. Só o infinito lhe é suficiente agora. Percebe, então, que anseia pelo Infinito em si mesmo, anseia por se libertar de todas as finitudes da existência, da consciência e da alegria mundana. Descobre que, até então, sempre esteve desorientado quanto ao verdadeiro alvo de seu desejo. Inicia-se o trilhar pela verdadeira busca; a busca da união ou unicidade com o Infinito.
Passa-se, então, a viver com mais tranqüilidade, estudar obras inspiradoras, manter-se atualizado com o progresso nas artes e nas ciências e passar mais tempo introspectivo, sozinho ou na companhia de um companheiro (a). Mas isso é uma longa jornada em que, realmente, o tempo é de muito menos importância do que o observar a nós mesmos e sentir o que verdadeiramente nos importa no momento presente: no agora.
Não se deve condenar nada que o homem busque em sua evolução, pois todas as metas são apenas etapas que devem ser atingidas, para se constatar que não são metas reais. O homem é um buscador que na maioria das vezes pensa que achou o que buscava. “É preciso desocupar-se para viver a sabedoria”. Estou ocupado com coisas urgentes que não são importantes ou de coisas importantes que não são urgentes? O discernimento reside em perceber o que é secundário, para que nos desocupemos dele e busquemos viver a sabedoria interior; anônima e silenciosa.
Somente assim, é que a voz que fala no silêncio de nosso coração passa a ser percebida e que o buscador pode descobrir suas próprias técnicas para ouvir melhor a voz da sua Consciência… O aspecto mais importante de todas as tradições sapienciais (Yoga inclusive) é a busca da nossa essência, algo que nos é infinitamente superior e que nos habita, por trás de todos os nossos condicionamentos culturais e sociais. A busca daquilo que nos faz semelhantes.
Enquanto se está a buscar, é nossa persona quem está no comando. Quando o ego aprende a estar no seu espaço de silêncio aprende a reconhecer a Presença, Aquele no qual podemos continuar nossa caminhada, o Eu que cala, ouve, acolhe, sorri e, quando preciso, comanda o mudar. Então, o que no início era uma busca agora passa a ser um caminho que se faz ao caminhar, pois na verdade “eu sou alguém que caminha ao meu lado”. Então avante! Ponhamo-nos a caminho, permeado pela Presença: a Caminho, no Ser!
BIBLIOGRAFIA
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As referências bibliográficas acham-se assim indicadas: xx:yy, onde ‘xx’ é o número da referência contido na BIBLIOGRAFIA (no final do livro) e ‘yy’ é a página onde se encontra.
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Quando precedendo ‘xx’ estiver escrito YS, a obra referenciada é o Yoga S?tra de Pat?ñjal?, BG quando for Bhagavad G?t?, VC quando for o Viveka Ch?d?mani, TB quando for o Tattvabodha? e SS quando a obra referenciada for o ?iva S?tra (obra de referência no ?ivaísmo de Cachemira). Nesses casos ‘xx’ é o capítulo e ‘yy’ é o s?tra.
1. Smith, Huston; As Religiões do Mundo; Editora Cultrix, 10a Edição, São Paulo, 2.000;