Podemos ser curadores, mas sempre… também feridos! (Parte 1)

 A angústia perante o adoecimento, o envelhecimento e a morte como
oportunidade de individuação, de sensibilização para o cuidado em
saúde/saúde mental e de renovação da militância social

Eduardo Vasconcelos[1]

“(…) (Represente que o homem é um poço escuro.

Aqui de cima não se vê nada.

Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver o nada).

Perder o nada é um empobrecimento”.

 

“(…) A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaros.

Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.

Isto seja:

Deus deu a forma. Os artistas desformam.

É preciso desformar o mundo:

Tirar da natureza as naturalidades.

Fazer cavalo verde, por exemplo.

Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.

 

Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar (…)”.

 

Manoel de Barros[2]

A colocação da questão

Os sinais de adoecimento individual ou coletivo devem nos despertar para mudar as condições ambientais e de vida que determinam a doença e para um esforço assistencial para o tratamento das pessoas e grupos sociais atingidos, processo que constitui uma dimensão fundamental de nosso compromisso profissional, principalmente para aqueles que abraçam um projeto ético-político de engajamento com os interesses históricos das classes populares. Essa perspectiva pode ser identificada, em seus aspectos subjetivos, como expressão de nossa dimensão heróica, de potencialidade de mudar o mundo e a sociedade, de conquista, de luta pela realização de projetos individuais e coletivos, de afirmação e de cuidado pela vida. Esta dimensão é inegável e faz parte constituinte de nossa existência, particularmente na juventude e nas primeiras décadas de vida.

Entretanto, há outras dimensões subjetivas e existenciais do processo de adoecimento e do envelhecimento que não podem ser esquecidas, e que na maioria dos trabalhadores da saúde e em todos nós, seres humanos, são relegadas ou recalcadas, pelo seu caráter permanentemente incômodo: o adoecer aponta para o fato de que nosso corpo é limitado, é passível de desgaste, de complicações, de envelhecimento, e de que caminha inevitavelmente para a morte, mesmo que em um futuro mais adiante.

Não é aleatório que, particularmente no caso de doenças crônicas e mais graves, a irrupção do problema ou a identificação definitiva do diagnóstico são sempre acompanhados por perguntas inevitáveis: por que eu? Qual o significado disso? E para os mais sinceros e dispostos a se confrontarem com estas perguntas, outras também emergem: o que essa doença pode estar me dizendo para além da dor e dos diversos incômodos que ela provoca? Qual o sentido da vida, se a dor, a doença, a velhice e a morte são partes constitutivas dela? Assim, além do sofrimento e das complicações físicas e funcionais, do esforço de lidar diariamente com os sintomas e o tratamento, bem como com os seus custos econômicos, sociais e da produção do cuidado pelos outros, o adoecimento mais grave implica necessariamente em um processo de angústia existencial e subjetiva que mobiliza inevitavelmente um enorme investimento psíquico, tanto para recalcar esta angústia e estas perguntas, ou para elaborá-las de uma forma mais autêntica.

Quando chegamos neste ponto, nós, profissionais, temos que reconhecer que as ciências biomédicas não têm como responder a estas perguntas por si mesmas. Até mesmo as ciências humanas, como a história, a antropologia, a filosofia e a psicologia têm seus limites. Como veremos no decorrer deste trabalho, elas podem nos ajudar a reconhecer certas características e a importância dos processos associados a elas, a mapear as diversas estratégias culturais, psicológicas, racionais e míticas que a humanidade vem utilizando para vivenciar e responder a estas perguntas. Entretanto, o caráter cognitivo e consciente destas descrições e análises não tem como oferecer respostas integrais a estas indagações, ao sofrimento e às emoções de cada um de nós, simplesmente por que eles ultrapassam os limites de conhecimento racional e universalmente reconhecíveis das diversas ciências parciais do homem. Como essas perguntas são sempre recolocadas por cada indivíduo e agrupamento humano, elas só podem ser respondidas integralmente no campo das experiências míticas, religiosas e espirituais[3]. Assim, essa exigência ao longo da história acabou gerando sistemas coletivos de mitos e crenças ético-religiosas, ainda que de forma negativa (ateísmo) ou reconhecendo a priori a incapacidade de respondê-las (agnosticismo).

No âmbito das práticas em saúde e saúde mental, mesmo que nós profissionais tenhamos nossas preferências individuais no campo espiritual ou religioso, acredito que não devamos comunicá-las explicitamente aos nossos clientes em sofrimento, não só por representar uma regra ética de algumas de nossas profissões, mas por que aí temos uma relação assimétrica, marcada por mecanismos de poder, por intensos processos transferenciais e contratransferenciais[4] e por desigualdades culturais. Além disso, este tipo de comunicação pode bloquear um processo genuinamente singular e pessoal de elaboração pelo cliente e um diálogo e uma troca mais rica entre o profissional e ele. Aliás, uma das intenções deste trabalho é nos ajudar a lidar um pouco melhor com este desafio.

De meu ponto de vista, como psicólogo e cientista político, gostaria de desenvolver neste trabalho uma análise ainda dentro do campo das ciências humanas convencionais, mas explorando ao máximo seus limites, expondo algumas de suas principais contribuições na abordagem deste tema tão difícil que é a angústia perante o adoecimento grave, o envelhecimento e a morte, e seus desdobramentos na espiritualidade, na religião, nos mitos e em seus processos inconscientes associados. Mesmo que as ciências humanas não possam responder àquelas perguntas, estes temas constituem processos sociais e subjetivos reais, concretos, que são passíveis de investigação científica. Nesta trajetória, as seções seguintes buscarão visitar contribuições dos estudos sobre os mitos, das ciências da história, das filosofias marxista e existencialista, e particularmente da psicologia junguiana. Estas seções apresentam níveis de complexidade diferentes e foram alocadas de forma razoavelmente aleatória, permitindo ao leitor realizar diferentes entradas no texto, conforme seu interesse e familiaridade com as dificuldades de cada abordagem.

Apesar disto, todas estas seções indicam para algumas teses comuns, algumas das quais gostaria de adiantar aqui: a capacidade, como profissionais, de acompanhar e suportar essa angústia do outro, que se confronta com o adoecimento grave, com o envelhecimento e com a morte, constitui parte intrínseca e essencial do bom cuidado integral às pessoas e coletivos que sofrem. Além disso, constitui também elemento indispensável na compreensão do processo sócio-existencial de saúde/doença e da renovação dialética da militância social, representando um processo que deve se dar paralelamente ao desenvolvimento teórico e ético da formação dos profissionais de saúde, saúde mental e da área social. E acima de tudo, esta capacidade depende fundamentalmente de nossa própria vivência pessoal e de nossa própria coragem de enfrentar estas angústias em cada um de nós, em nosso processo pessoal de individuação, e que vai inclusive muito além das respostas prontas oferecidas pelos sistemas institucionalizados de crenças religiosas ou a-religiosas.

Para desenvolver estas teses, gostaria de propor ao leitor iniciar o caminho entrando em contato com a linguagem típica com que estes temas são tratados pelos seres humanos. Como vimos acima, quando tocamos nestas dimensões profundas do humano, o discurso racional convencional apresenta seus limites, e as diversas culturas tendem a lidar com elas por meio de formas especiais de saber e conhecimento, as imagens e estórias míticas, como nos relatos religiosos, nas artes, na literatura, nos contos infantis, nas telenovelas, no teatro e no cinema. O discurso mítico é sempre metafórico e polissêmico, ou seja, induz sentidos de forma indireta e cifrada, e está sempre aberto a novas significações e revisões renovadoras.

Na vida social, podemos lidar com os mitos de pelo menos três formas. O senso comum e a cultura viva os vivenciam na sua concretude, de maneira literal, como elementos ou personagens reais. As ciências mais ‘duras’, empíricas ou racionalistas, tendem a vê-lo como fantasia, ilusão, mistificação, ou como gênero literário ou fenômeno de menor importância. As ciências humanas interpretativas e da subjetividade, no entanto, reconhecem a sua importância como expressão legítima e profunda dos dilemas humanos e sociais, que devem ser compreendidos em sua significação cifrada, para além de seu sentido literal, como reveladores dos processos mais profundos da cultura e da subjetivação individual e coletiva, cuja tarefa constitui inclusive parte integral das lutas por uma sociedade mais justa e solidária, dos processos de amadurecimento psicológico individual e coletivo, e da compreensão dos aspectos subjetivos do cuidado em saúde e saúde mental. É essa perspectiva que adotamos aqui.

Imagens míticas que revelam a centralidade do problema da morte para o ser humano: os vampiros e os deuses

Gostaria de pedir licença aos leitores para iniciar nossa reflexão pelo lado mais incômodo, através de uma imagem mítica que nos fala de uma “ética invertida”, que possa nos ajudar a vislumbrar as facetas mais sombrias do inconsciente e dos desejos humanos. Isso certamente nos ajudará a contemplar as possibilidades mais autênticas de uma ética do cuidado, de amadurecimento psicológico e de uma militância social mais integrais, no lado mais claro e consciente da existência, mas que possa representar melhor a integralidade de nossas vivências subjetivas. Assim, convido ao leitor para revisitarmos as estórias de vampiros

A imagem mítica do vampiro tem uma de suas inspirações nos morcegos hematófagos dotados de incisivos superiores grandes e bordas cortantes, que rejeitam a luz do dia e saem à noite de seus esconderijos escuros, geralmente tocas e cavernas,  para se alimentarem de sangue de aves e mamíferos. As imagens antromorfizadas de vampiros emergiram muito antes das versões literárias formais, particularmente a nossa versão mais conhecida, a de Drácula, escrita na Romênia no século XIX. Estes relatos existem há séculos e são ainda muito comuns em pequenas comunidades e vilas agrárias mais isoladas na Escandinávia, na Europa central, do sul e particularmente do leste, onde está hoje a Romênia.

Considero que uma das versões cinematográficas mais ricas do mito, inclusive para os propósitos deste trabalho, está no filme norte-americano “Fome de Viver” (The Hunger), de 1983, dirigido por Tony Scott, que sugiro aos leitores dar uma olhada, já que normalmente está disponível nas melhores locadoras de filmes. A estória é vivida na contemporaneidade, e conta com Catherine Deneuve, em uma brilhante atuação como personagem principal de amante vampira, que não envelhecia e se mantinha intocável eternamente, bem como com David Bowie, seu parceiro. O casal vampiro vivia em incursões em boates e casa noturnas, nas quais escolhiam parceiros para rituais extremamente sensuais, verdadeiras orgias sexuais, após os quais eram devidamente sugados, mortos e incinerados. Esta vida é transtornada pelo súbito processo de envelhecimento do personagem vivido por Bowie, que se recusa a envelhecer e passa então a buscar alucinadamente alternativas em pesquisas médicas acerca do controle do relógio biológico e de possibilidades de rejuvenescimento. Naturalmente, como bom cinéfilo, não contarei o fim da estória, para interessar o leitor a buscá-lo por si mesmo…

Como todo relato mítico de qualidade, a estória tem várias dimensões simbólicas, mas gostaria de extrair dela alguns significados que são sugestivos para a nossa discussão aqui. A meu ver, o vampiro representa uma imagem projetiva inconsciente de nós mesmos, de nossos desejos mais sombrios, para além dos vários recalques que cada um de nós tem de realizar para se integrar à luz da vida social e da consciência. Assim, não é aleatório que o vampiro viva apenas nas trevas e não possa suportar a luz do dia. Os vampiros, como imagem de nosso lado mais sombrio, realizam o desejo de possuir, de se deleitar e de sugar o sangue e a vida do Outro sem culpa, mesmo que isso implique na destruição e morte deste. Além disso, e mais fundamentalmente, eles representam o nosso desejo de não envelhecer e de querer negar a morte. O filme inclusive deixa claro, no “lado de cá dos humanos”, o esforço da medicina em buscar desacelerar o relógio biológico, em tentar manter a qualquer custo a juventude, em negar a morte.

Este último elemento introduz um componente histórico importante, associado  a nossa sociedade capitalista contemporânea, que se superpõe à nossa angústia ancestral perante a morte, componente que exploraremos com mais detalhe a seguir. Mas por enquanto, podemos dizer que a negação da morte associada a uma sociedade do consumo e do glamour reforçam o fascínio em relação à imagem dos vampiros, com sua vontade de viver intensamente, com poder, glamour, força e saúde plena, eternamente. Estes anseios são potencializados pela própria lógica da acumulação e consumo, que vende a imagem de satisfação plena dos desejos pela apropriação de dinheiro, poder, mercadorias, pela eterna juventude promovida pela medicina estética, que tentam ocultar os limites inexoráveis que marcam nossa condição humana de incompletude e de insatisfação permanente de nossos desejos. Além disso, já que os recursos econômicos para manter este sonho são para poucos, essa busca incessante de novos objetos de satisfação requer poder sugar o sangue e juventude do outro. Na lógica imaginária do sistema, este sacrifício é justificado porque, como nos vampiros, é condição para afirmar a possibilidade de vencer a morte, os limites existenciais do corpo na busca do prazer e para continuar vivendo. Muitas vezes, a medicina, o trabalho em saúde e seus profissionais são incorporados a esta lógica, pela mercantilização da indústria de aparelhos médicos, de fármacos e de serviços e seguros de saúde, buscando o lucro acima de qualquer preceito ético do cuidado e responsabilidade pelo outro. Assim, podemos dizer claramente que profissionais de saúde vampiros nunca serão bons terapeutas e cuidadores.

Do outro lado do espectro ético, as imagens míticas dos deuses e os rituais para se entrar em relação com eles também vão se utilizar de caminhos simbólicos semelhantes. É interessante lembrar que o tema do sangue constitui um importante elemento simbólico de ligação entre a vida corporal, as paixões e os processos espirituais, como nos rituais sacrificiais de sangue para adentrar a dimensão do sagrado, para aplacar a ira dos deuses nos momentos de dor, doença e morte. Temos também a imagem de beber o sangue de um outro humano como forma de receber a vida, de negar a morte e conseguir a vida eterna. Esta temática inclusive não é exposta apenas nos relatos míticos mais sombrios, mas constitui uma chave central de quase todas as mitologias e culturas, inclusive dos mitos judaicos e cristãos. Um bom exemplo está na estória do Rei Artur e na busca do Santo Graal, ou seja, do cálice usado por Jesus e que proporcionaria a imortalidade para quem dele beber.

Neste universo dos deuses e das religiões, a relação com a morte constitui então um tema central. Na tradição budista, por exemplo, existe um conceito importante que na língua dos textos originais, o pali, é chamado de duhkha, traduzido no ocidente  por sofrimento ou insatisfação (Powers, 2000). Trata-se de um conceito central para a caracterização budista do mundo e dos humanos, referindo-se principalmente à angústia gerada pela condição de impermanência e de constante  transformação de tudo e de nós próprios, em um ciclo permanente de morte e renascimento. Para os budistas, a cessação deste sofrimento se dá pelo alcance a estágios de iluminação ou nirvana, em que tem papel fundamental a aceitação desta impermanência e da morte definitiva, pela nossa diluição final neste movimento incessante do universo.

No hinduísmo, a figura do deus Shiva muitas vezes é lembrada como a presença da morte e da destruição, mas não de forma unilateral, pois reúne também, de forma antagônica, também os atributos da criação e renascimento. Configura assim, de forma semelhante ao budismo, um dos princípios fundamentais das religiões orientais: a visão totalmente dinâmica da vida e do ser humano, de que não há nada estático ou permanente, em um ciclo inexorável de nascimento, expansão e morte (Zimmer, 1989). Uma das representações mais conhecidas de Shiva é a da dança cósmica realizada por uma bailarina, apesar de Shiva ser um deus masculino. Nesta imagem, o deus pisa com uma das pernas em um anão, representando o indivíduo que não quer crescer psicológica e espiritualmente. Com a outra perna e um dos quatro braços, convida os humanos para o crescimento, para uma ascese. Mas adverte-os com um outro braço para ‘subir’ neste processo com cuidado, já que adentrará uma realidade de difícil compreensão e aceitação. Neste plano, um dos braços segura um pequeno tambor, por meio do qual suas batidas criam e recriam o universo. Do outro lado, porém, em outro braço, está o fogo eterno, que a tudo destrói e mata. Assim, a fatalidade da morte é assimilada como entonações sombrias de um bailado cósmico, mas que paradoxalmente também recria e nutre.

No ocidente cristão, mais conhecido nosso, é importante lembrar que a questão do confronto com a morte também constitui um elemento fundamental e central. A capacidade de Jesus de aceitar e enfrentar sua própria morte e de superá-la constituiu o marco decisivo de seu reconhecimento como divino e da fundação do cristianismo como religião. A partir daí, a participação no mistério da superação da morte é ritualizada particularmente através da missa, em que se bebe o vinho e o pão transubstanciados em seu sangue e seu corpo, como chave do caminho para uma vida eterna.

Assim, os exemplos citados acima indicam não só a universalidade destes temas míticos, mas também o caráter central da angústia perante a morte para a caracterização de nossa dinâmica integral de vida. Da mesma forma, a referência também a relatos ocidentais reitera que não estamos apenas falando de imagens longínquas, de outras culturas, que nos poderiam dar um certo alívio de não nos atingir, mas de processos inconscientes e universais que também fazem parte integral de nossa cultura e de nós mesmos, e que dizem respeito à nossa natureza mais profunda, difícil de ser visitada, e da qual podemos nos aproximar apenas indiretamente, e com muito cuidado e respeito.

Passaremos agora do campo do estudo dos mitos e da religiões para as ciências da história, para ver as suas contribuições sobre o tema.

Aspectos históricos do lidar com a morte nas sociedades tradicionais e atuais 

Na investigação da história humana, os vestígios de práticas de enterro dos mortos constituem para os arqueólogos uma marca do aparecimento dos primeiros hominídeos. No Homo sapiens, os seus rituais de sepultamento revelam a preocupação permanente e universal dos nossos ancestrais para com a morte e com os mortos, como uma imagem que revela seu próprio destino, e que inspira fascínio e horror. A sua ritualização significa, então, uma tentativa de sua domesticação, de despojá-la de sua violência e brutalidade, e transformá-la em uma ‘passagem’.

Este processo diante da morte vem sendo também objeto de estudo e pesquisa da antropologia e da história, e já há uma vasta bibliografia a respeito[5]. Entretanto, foi o historiador francês Philippe Ariès que sem dúvida alguma produziu uma das melhores sistematizações históricas acerca do tema até nossos dias, por meio de seu livro “História da morte no Ocidente” (1975/2003). Segundo ele, nem sempre a recusa direta foi a estratégia dominante de lidar com os enormes desafios colocados pela morte. Haveria então duas maneiras históricas principais de enfrentá-la. A primeira se manifesta nas culturas tradicionais, inclusive a medieval, em que havia uma necessária presença real enraizada e excessiva na vida cotidiana, exigindo inclusive um enorme investimento dos indivíduos durante a vida. A morte se anunciava ao moribundo através de sonhos e presságios e todos sabiam que iam morrer, arrumando sua vida, se preparando para a morte, cuidando de seus santos, tomando suas providências, preparando seus rituais funerais, muitas vezes constituindo toda uma cultura fúnebre. A morte era vivida familiarmente, com simplicidade e publicidade, em público, com o morto presidindo a sua morte, em rituais que se iniciavam antes do suspiro final. Esta familiaridade com a morte estava sem dúvida ligada à dependência e à aceitação incondicional da ordem da natureza pelo homem da época, concepção que será gradualmente questionada no Iluminismo. Neste vasto período, variavam as atitudes com os já mortos, desde a sua manutenção longe das cidades, pela poluição e por uma veneração periódica que escondia o medo de que voltassem, até o seu acolhimento perto e dentro das igrejas, que funcionaram durante algum tempo como cemitérios.

Gradualmente, a Idade Moderna capitalista foi introduzindo um distanciamento da morte, e com o dualismo e racionalismo cartesiano, operou-se uma separação radical entre alma e corpo, sendo este último apropriado pela medicina, com a morte sendo associada à doença.

Hoje, ela nos causa tanto medo que até mesmo a referência direta à palavra é interditada, reduzida a pura alteridade e negatividade, à exclusão e ao silêncio. Ela se tornou inconveniente e suja, como as secreções do corpo. O moribundo é afastado da convivência, é mantido na ignorância de seu estado, é objeto de um processo brutal de medicalização, no qual se torna um fenômeno técnico, mais um ‘caso’, e a proximidade da morte no envelhecimento é colocada sob o olhar de especialidades separadas do conjunto da medicina, a gerontologia e a geriatria. A solidão dos moribundos nos hospitais, objeto de alerta por Norbert Elias (2001), oferece uma proteção biológica e psíquica contra a angústia associada à morte para a família e a sociedade, diminuindo o incômodo que produz na organização das rotinas da vida cotidiana, do trabalho e do sistema econômico, que não podem parar. Há uma verdadeira mercantilização de ramos da medicina voltadas para a tentativa artificial de rejuvenescimento, de cirurgias plásticas, de prolongamento da vida e negação da morte. E quando ela vem, é vivida pelos profissionais da medicina com um fracasso ou derrota, e o cuidado do morto é deixado para os escalões inferiores, os auxiliares de enfermagem.

Nesta metamorfose, o processo de formação dos futuros profissionais de saúde nas universidades é hegemonizado desde seus primeiros dias pelos rituais de dissecação anatômica, pelo estudo dos processos fisiológicos e patológicos em corpos, órgãos e tecidos em partes, sem vida, sem fala e sem olhar. Assim, o início da formação em saúde se dá completamente  à parte de uma clínica de seres vivos, como que se quisesse tentar marcar a ferro, lá no fundo do paradigma de conhecimento e da subjetividade de cada profissional, um esquecimento de algo básico e fundamental: de que o objeto de nossa prática é sempre e primordialmente gente viva, que sofre, que vive a angústia e a multidimensionalidade dos desafios éticos e subjetivos. E primordialmente, que temos como dever profissional a regulação do processo vida-morte dos outros seres humanos, com todas as suas vicissitudes pessoais e sociais, como se dá em cada um de nós. No sentido inverso, esse esquecimento plantado no íntimo dos profissionais de saúde constitui, a meu ver, uma brecha ética e subjetiva que possibilita uma incorporação acrítica na mercantilização da medicina e para a produção de profissionais vampiros, como vimos anteriormente.

Se já começamos e nos embrenhar nesta temática das implicações históricas e sociais do confronto com a morte, talvez seja o momento de avançarmos então mais firmemente nesta direção, focando as práticas emancipatórias de resistência e de transformação social e política, e sua relação com a morte e o morrer.

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