“O despojamento da personalidade e a resultante criação de um vácuo interior, que tem lugar no vôo do solitário para o Solitário, não é fácil de ser suportado, a menos que tenhamos a fonte interna de alegria em atividade dentro de nós” 90:198.
Igbal Kishen Taimni (1.898-1.978)
“O Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito, ali está a liberdade… 60:14 Liberdade… não significa a capacidade de escolher de preferência o mal ao bem, mas antes a capacidade de preferir o bem acima do mal, sem jamais se deixar iludir pelas falsas aparências do bem” 60:38.
Thomas Merton (1.915-1.968)
1. A LIBERTAÇÃO
“Liberdade é desfrutar de tudo o que você faz, de maneira que os outros também fiquem felizes: ser útil sem nenhum sentimento de servidão, dar constantemente sem nenhum sentimento de doação…, fundir-se com o sentimento dos outros sem perder o próprio centro… resultante da consciência da identidade entre a nossa natureza e o universo” 39:175.
William Gleason
Maravilhosa é a união da persona com o verdadeiro “Eu”, acarretando inúmeras mudanças adicionais em todo o ser. Com o passar do tempo, passa-se a sentir que não mais dois “eus“ existem, mas apenas o “Eu superior”, pois absorveu completamente o “eu inferior”. Atinge-se um estado, conhecido pelos teósofos como 2ª Iniciação (Cf. em “A SENDA INICIÁTICA” no Volume 3). Mas esse processo não é abrupto e sim gradual.
Na medida em que, gradualmente, o “Eu superior” passa a ser constantemente manifestado, mudanças vitais ocorrem em nossas vidas interior e exterior, e se elas não ocorrem é sinal de que a nossa Sombra não foi totalmente conhecida e alguma ferida nossa, escondida na nossa porção mais íntima, não foi reconhecida e continua trabalhando contra nós. Outra possibilidade é a de que hábitos antigos, construídos por nossa Sombra e que devem ser substituídos por novos e saudáveis hábitos, continuem trabalhando contra nós.
“Somente aos poucos você alcança o estado no qual um novo padrão de hábitos é instituído, no qual o ato de se entregar ao Todo é realizado, onde Ele se manifesta e permeia todos os seus pensamentos e percepções, todas as suas decisões e ações, todos os seus sentimentos e reações” 75:226.
Eva Broch Pierrakos (1.915-1.979)
Dessa forma, a mudança interior começa a se manifestar exteriormente e uma vida divina se realiza em nós. Cada pensamento, cada opinião, ação e reação, por mais insignificantes que possam parecer, são conscientemente permeados pelo “Eu superior”, pois esse está totalmente integrado à vida da persona. A voz interior do “Eu superior” consegue penetrar todo o ser com sua verdade, sabedoria, bondade e alegria. Um sentimento de absoluta segurança, coragem e autodisciplina será obtido, uma profunda paz e um senso de plenitude inundará a persona, eliminando todos os medos e ansiedades, não de uma forma teórica, mas verdadeiramente experimentada.
Outra manifestação exterior é a absoluta perda de identificação com alguns desejos materiais que antes eram considerados ”vitais”. Surge um sábio equilíbrio em todas as coisas, como entre o negar e o ceder, uma profunda satisfação em dar ou em cumprir uma missão, ser gentil e cortês, e uma capacidade inesgotável de ser grato ao próximo e apreciá-lo tanto quanto a si mesmo como também à Criação. Deixa-se de lado a falsa liberdade mundana, pela impossibilidade real de se ceder aos impulsos de satisfação dos desejos, apegos e repulsas, e vive-se, então, na verdadeira Liberdade divina.
Essas mudanças vêm como fruto de momentos especiais, vividos durante a “oração de quietude” a qual já surge de maneira habitual durante a meditação. Sobrevêm, então, momentos denominados por Santa Tereza d’Ávila como “oração de união”: “a alma está como que adormecida: nem lhe parece que dorme, nem se sente acordada… Com efeito, durante o pouco tempo em que dura a união, a alma fica verdadeiramente fora de si, sem sentidos. Não é possível pensar, ainda querendo, nem é preciso prender a imaginação com artifícios” 92:101. Atinge-se a quinta morada, descrita por Santa Tereza d’Ávila (1.515-1.582).
Durante esse estado ampliado de consciência, breves momentos de união, nada se vê, nada se ouve e nada se entende. Todos os sentidos e o intelecto somem, de forma que o tempo decorrido parece ser ainda mais breve do que é. Apesar disso, após viver essa experiência, nuca mais seremos os mesmos, pois mesmo sem ver, ouvir ou entender coisa alguma, volta-se ao estado vigil com a absoluta convicção de que se esteve com Deus. E nada nem ninguém consegue desfazer essa certeza. Embora não tenhamos ainda transformado, em nosso interior, tudo o que deve ser transformado, vem-nos essa gigantesca dádiva de sentir, nem que seja por poucos segundos, a presença do Vazio Infinito em nosso interior, o Nada.
“Permaneça ‘vazio’ o mais que puder, de maneira que Deus possa preenchê-lo. Nem Deus pode pôr alguma coisa dentro de algo que já está cheio. Ele não se impõe a nós” 12:54.
Madre Teresa de Calcutá (1.910-1.997)
Quando o nosso ego, transformado, ampliado (porque agora incorpora todo o inconsciente) e unificado com o “Eu superior”, consegue atingir esse estado mental de paz, se torna apto a esvaziar todos os seus desejos, emoções aflitivas e pensamentos esperando experimentar novamente o vazio interior, o assustador nada. Esse momento de união por vezes é único, mas faz marcas tão profundas na memória, que cada vez mais se anseia por ocasiões para estar só e meditar. Todo o desejo se direciona a tornar a sentir aquela inexprimível e inexplicável felicidade.
O ego se transforma, então, em Ego. Totalmente identificado com o “Eu superior”, não mais existem sentidos, sentimentos e pensamentos conflitantes. Um alinhamento se forma em torno do “Eu superior”. Ele se torna o centro do ser. Os sentimentos de unidade e de unicidade surgem.
Mas, paradoxalmente, novos tormentos surgem: críticas de amigos ante a nova postura de vida assumida, ou elogios públicos dos quais se acha não ser merecedor. Podem surgir doenças físicas, principalmente se o cuidado com o corpo tiver sido abandonado (falta de exercícios ou de boa alimentação em qualidade e quantidade suficiente), começam a surgir dúvidas pessoais quanto à própria saúde mental, às vezes reforçadas por pareceres de outros. Se não surgirem, se o buscador ficar tão embevecido que não quiser mais sair daquele inexplicável estado de felicidade, “procurando-o” ou “fabricando-o” a todo custo, é sinal de que algo não vai bem:
“Procurai sair desse engano, e desembeber-vos com todas as vossas forças, distraindo-vos. Se não bastar, dizei-o à priora, para que vos dê um ofício tão cheio de preocupações que vos livrem desse perigo – bem grave se durar muito tempo, ao menos para a cabeça e o juízo” 92:192.
Santa Teresa d’Ávila (1.515-1.582)
Além daqueles tormentos, como a experiência do êxtase não se repete mais, começa-se a sentir uma inquietação tão grande e uma angústia tal que se passa a duvidar e acreditar que tudo não passou de construções de sua mente. A noção de um mundo superior lhe some dos pensamentos. Ainda mais, surge o medo de entrar em contato com esse vazio novamente e se perceber cheio de nada, sem mais nenhum desejo material. O divino sumiu (ou nunca existiu) e há a possibilidade real de se perder o que sempre se teve. Começamos a encher a nossa mente com barulhos inúteis. É a persona querendo sobreviver, ante a perspectiva de extinção. O que sempre achei que fosse “eu”, agora não pode mais morrer!! Mas o processo continua:
“Uma vez mais você precisa de coragem para atravessar um túnel de incerteza. Você precisa assumir o risco de admitir a grande quietude, que é, a princípio, vazia de significado, desprovida de qualquer coisa que denote vida ou consciência” 75:237.
Eva Broch Pierrakos (1.915-1.979)
O carmelita, doutor da Igreja Católica, São João da Cruz (1.540-1.591) afirmava que havia um momento do desenvolvimento espiritual em que o que antes era motivo de alegria agora produz uma sensação de vazio 87:13. Tem-se a impressão de que se perdeu o essencial: a persona começa a “morrer” e não sabe o que a substituirá. Até a relação com Deus muda e a maneira habitual de se rezar, assim como o costume de se ler livros espirituais, é causa de desgosto. Não se consegue mais estar só e meditar nem as companhias amigas servem de consolo. Esses são os sinais da chegada da “noite escura dos sentidos” de São João. No taoísmo, essa situação está simbolizada no Hexagrama 23 (PO) do I Ching, que indica um período de declínio quando se aproxima o vazio, ou plenitude.
Na noite escura do espírito, no vazio silencioso, Deus nos fala com Sua mudez ensurdecedora a ponto de nos romper os tímpanos. Segundo São João da Cruz, o silêncio não é uma negativa do som, mas um “segredo” 87:18. Quando a persona encontra a Presença Divina, ali Ela recria o eterno silêncio. A música que ressoa no centro da alma, o lugar dentro de nós onde somos a imagem de Deus, onde somos um templo vivo e onde mora a Santíssima Trindade, é uma “música calada”.
“…arrebatado ao paraíso, e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” .
Paulo de Tarso (II Cor 12:1-4)
“Aquele que está como dormido, tanto no sono como na vigília, sem respirar e imóvel, é verdadeiramente livre. Aquele cujos sentidos não se agitam, cuja mente e respiração se absorvem no próprio ser, que está como morto, se chama Jivanmukta, o que se liberta em vida. Não ouve, não cheira, nem toca nem vê; tampouco conhece o prazer ou a dor, nem exercita a mente. Como um tronco de madeira, não conhece nada nem é consciente de nada; está unicamente absorvido em Shiva, está em Samadhi” 50:86.
Kularnava Tantra (VI: 4)