A Consciência na Morte

“A mente [sem um corpo físico] é nove vezes mais clara, portanto, mesmo que ela seja tola, por força do karma, torna-se tão clara nesse momento que consegue meditar em qualquer coisa que lhe é ensinada. [Por isso] é útil celebrar os rituais para os mortos” 46:182.

O Livro Tibetano dos Mortos

 

 

A percepção, o poder da vontade e o pensamento reflexivo são atributos da consciência que, em geral, só se manifestam quando os princípios superiores do homem estão ligados a seus princípios inferiores. Ou seja, o Espírito (Atma) só é autoconsciente devido a sua persona. Dissolvida esta, o ser humano vive em outras dimensões, quase sempre, sem nenhuma consciência do que está ocorrendo com ele.

O corpo físico-etérico-astral, o “homem energético” visto no Capítulo II, é o princípio responsável por dar autoconsciência à divindade interior. A evolução pessoal necessita das experiências vividas e armazenadas nele, e faz parte dessa evolução aprender a levar a consciência física ao corpo astral (Kama), ao corpo causal (Manas) e ao corpo búdico (Buddhi). Necessitamos da consciência física para aprender a não necessitar dela para nossa autoconsciência. O homem espiritualmente evoluído é aquele plenamente consciente dos seus sonhos (do mundo astral), do seu sono sem sonhos (mundo causal) e plenamente consciente em estado de meditação profunda (o mundo búdico). Ele consegue trazer o céu à Terra (o divino à consciência física) e vive em bem-aventurança.

Quando o homem evolui e consegue interagir e exercer seus atributos de consciência (como a percepção, o poder da vontade e o pensamento reflexivo) em seus sonhos, independentemente de seu corpo físico-etérico, ele se torna apto a manter a sua consciência no plano astral, após a sua morte, e poderá identificar oportunidades de conseguir, na morte, a sua bem-aventurança.

Dirigir os seus sonhos, perceber todos os detalhes dele, refletir e decidir o que se quer que aconteça, faz sumir o medo do desconhecido pela real percepção de que “eu tenho o comando de todos os aspectos de minha vida”. O medo é o maior empecilho à nossa evolução. Em geral, nos momentos em que estamos mais fragilizados e sensíveis é que ocorrem aumentos de nossa percepção e experimentamos estados ampliados de consciência aos quais rejeitamos pelo simples medo da falta de controle.

Estudos sobre experiências de quase-morte mostram que as pessoas em parada cárdio-respiratória passam por, no mínimo, três estados psicológicos. Inicialmente ocorre uma resistência e luta devido ao temor de perder o controle, perder a vida. Aceito o inevitável, surgem lembranças na forma de revisão de toda a vida passada, nos mínimos detalhes: fora do espaço-tempo, cada pessoa vê toda a sua vida lhe passar como num filme, mostrando-lhe todas as causas e efeitos que estiveram em ação na sua vida, vendo-se de fato sem as Máscaras. Ele sente e conhece toda a justiça de todo o sofrimento que o afligiu. É um insight retrospectivo da vida que se levou.

Em seguida, para alguns, vem uma experiência mística de êxtase e transcendência. Não que toda morte seja uma experiência mística ou de iluminação, mas deveria ser preparada para assim o ser. Muitas tradições assim pensam a respeito da morte e recomendam algumas atitudes a serem praticadas em vida para que o “homem justo” tenha uma morte gloriosa em êxtase (o Mahasamadhi hindu).

“A morte de uma pessoa assim é muito… mais tranqüila do que foi toda a sua vida espiritual na terra… porque morre com os mais sublimes impulsos… assemelhando-se ao cisne cujo canto é muito mais suave no momento da morte. …Os primeiros tesouros do homem justo, e o seu último, se ajuntam para acompanhá-lo em sua partida e ida para fora deste reino, enquanto louvores se escutam dos extremos da terra que, como diz Isaias, são a glória do homem justo (Is 24,16)” 44:77.

São João da Cruz (1.540-1.591)

A doutrina da única vida no corpo físico, na qual enfatiza-se a busca do paraíso eterno, fugindo do inferno, e a doutrina da reencarnação com a sua busca da libertação do ciclo de reencarnações, dão ênfase a dois diferentes aspectos da verdade, que se complementam. Jung, que bebeu na fonte hindu de conhecimento, afirmava que a vida do homem começa a ser mais contemplativa a partir de seu período médio de existência (35 a 40 anos), e dessa forma deveria ser um processo de espiritualização crescente cujo clímax deveria ser a morte: a porta para o último êxtase (ressurreição, nirvana, mahasamadhi, etc.).

A tradição tibetana imortalizou os sinais e as fases do óbito em sua literatura médica. O Gyu-zhi e o Bardo Thötröl são obras de referência no assunto. Segundo eles, em primeiro lugar os elementos constituintes do corpo físico-etérico (terra, água, fogo, vento e espaço) se dissolvem e o quaternário superior (Atma-Buddhi-Manas-Kama) fica livre para reconhecer a natureza luminosa da morte e a realidade do vazio. Quando tal reconhecimento não ocorre, experimenta-se uma total inconsciência ou uma série de alucinações, agradáveis ou não, guiadas pela lei do Karma, que culminam na experiência da reencarnação 21:143.

Da mesma forma que a vida, a morte deve ser vivida conscientemente, pois ela se constitui de fases que devem ser reconhecidas, pois são oportunidades ímpares de se libertar do ciclo das reencarnações. Por isso os tibetanos desaconselham o uso de drogas sedativas e de analgésicos fortes, por interferirem em nossos corpos sutis e comprometerem o reconhecimento dessas fases, sobretudo da última e mais importante fase de luminosidade. Essas fases são detalhadamente descritas no “Livro Tibetano dos Mortos” 46:82 como visões, que são apenas projeções da mente, desconhecidos estados psicológicos que são também oportunidades de iluminação, a qual fica cada vez mais difícil à medida que vão passando as visões.

O estágio intermediário entre a morte e o renascimento é conhecido como Bardo, estágio condicionado pelos nossos hábitos mentais desenvolvidos durante a vida e pelos últimos pensamentos ao morrer: um intervalo de suspensão e de incerteza da sanidade ou insanidade; uma transição para o desconhecido. Mas é também um estado de imensa ampliação da consciência, em que, com plena atenção, deve-se observar a seqüência dos sinais da morte, descritos a seguir, em busca de sua libertação final.

Na fase inicial do processo de morte, a pessoa perde suas forças e não pode mais manter a cabeça ereta, fica pálido e não consegue mais ver as coisas com clareza. Os membros ficam frios e o trato gastrintestinal pára. Os tibetanos dizem que, nessa fase, em que fisicamente nos sentimos “pesados”, “o elemento terra se dissolve na água”. Em seguida, constata-se que a circulação sangüínea começa a falhar. Os tibetanos descrevem essa fase como: “a água se dissolvendo no fogo”; ou seja, todos os orifícios se ressecam e a pessoa que está “morrendo” sente sede e a mente se encoleriza.

Há um terceiro momento em que o moribundo passa a respirar com dificuldade, todo o calor interno some (“o fogo se dissolve no ar”) e ele passa a sentir muito frio. Agora a mente se “volta para dentro” e pode perceber as coisas externas ou não, e se perde o controle esfincteriano. Na exalação final, o “ar se dissolve no espaço” e o quaternário superior do moribundo perde a sensação de contato com o mundo físico, entrando num estado de inconsciência até que a atividade cardíaca cesse.

No período entre a última batida do coração e o momento em que o Prana deixa o corpo físico, esse “ejetará” toda a memória arquivada em si devolvendo à consciência, fielmente, cada percepção e reflexão, e, como em um sonho, todos os eventos de nossa vida passarão ordenada e involuntariamente em nossa tela mental, em um estado de perfeita lucidez, independentemente de morrermos psicóticos ou comatosos, por exemplo. O sentimento mais forte nesse momento, que independe de nosso controle e invariavelmente depende de como levamos a vida que ora se encerra, será o sentimento determinante de nossa bem-aventurança ou sofrimento, o formador de nossa futura existência.

No momento em que o Prana, que vitalizava o corpo físico, volta à fonte, se retirando, junto com a consciência, pelo topo da cabeça através do Nadi central (Sushumna), o vínculo entre o corpo físico-etérico e o quaternário superior se rompe e, cessada a revisão, toda a percepção é extinta e perdem-se temporariamente o poder da vontade e o pensamento reflexivo (Sl 145:4). O quaternário superior, tão subitamente como o apagar da luz de uma lâmpada quando lhe é interrompido o fornecimento de energia, se torna novamente inconsciente e sem qualquer vestígio de memória, e “adentra” no Kama-loka (na dimensão astral): o mundo de desejos.

O corpo físico-etérico vive ainda, algum tempo, no unitário, embora irremediavelmente morto no seu todo, pela falta de Prana, pois as células individuais do corpo físico, por exemplo, sobrevivem até o esgotar-se dos nutrientes, quando então, decompondo-se, liberam paulatinamente todas as moléculas que o constituem: retornam ao pó (Gn 3:19, Ecl 3:20). Morre o corpo físico-etérico (fluidos saem pelos orifícios naturais do corpo) e o Prana retorna à fonte: a tríade inferior se dissolverá (Ecl 12:6s). Inicia-se a experiência do Bardo.

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