Gautama: o Aparecimento e Difusão do Budismo

A História de Gautama

Será interessante passarmos das atividades intelectuais e morais de Atenas e Alexandria e do desenvolvimento das idéias humanas no mundo mediterrâneo, para a vida intelectual, quase inteiramente distinta da Índia. Aí se encontrava uma civilização que, desde o princípio, parece ter brotado de raízes originais, desenvolvendo-se com um caráter todo próprio. Estava separada das civilizações do oeste e de leste por vastas barreiras de montanhas e grandes regiões desertas. As tribos arianas que haviam descido para a península, depressa perderam contato com as demais tribos, suas semelhantes, do oeste e do norte, desenvolvendo-se em linhas independentes e próprias. Esse foi, mais, especialmente, o caso das que penetraram a região do Ganges e foram ainda além. Encontraram elas uma civilização dispersa pela Índia, a civilização dravidiana. Esta civilização era um desenvolvimento independente daquela ampla e vasta cultura neolítica, cujos característicos já descrevemos, é que constituiu do mesmo modo o tronco de onde brotaram as civilizações sumeriana, cretense e egípcia. Aquelas tribos reviveram e transformaram a civilização dravidiana, assim como fizeram os gregos com a egéia e os semitas com a sumeriana.

 

Esses arianos indianos viviam sob condições diversas das que prevaleciam ao noroeste. Viviam em um clima mais quente, em que uma dieta de carne e bebidas fermentadas era ruinosa e destruidora; foram forçados, portanto, a uma alimentação de modo geral vegetariana e a terra, prolífica, quase sem ser solicitada, lhes deu todo o alimento de que precisavam. Já não havia razão para vaguear; as lavouras e as estações eram certas e seguras. Roupa e casa, de pouco precisavam. Tão pouco, que o comércio não se desenvolveu. Havia ainda terra para todos que desejassem cultivá-la – e um pequeno trato de terra bastava. A sua vida política era simples e relativamente segura ; nenhum grande poder dado a conquistas havia ainda surgido na Índia e as suas barreiras naturais bastavam para deter os primitivos imperialismos do oeste e de leste. Milhares de pequenas repúblicas – aldeias e pequenos clãs relativamente pacíficos – espalhavam-se sobre a terra. Não havia vida de mar, nem incursões de piratas, nem mercadores estranhos. Pode-se escrever um história da Índia, chegando-se até quatrocentos anos atrás, sem mencionar, talvez, o mar.

A história da Índia, por muitos séculos, havia sido mais feliz, menos feroz e mais sonhadora do que qualquer outra história. Os nobres e os rajás caçavam; e a vida era um tecido colorido de histórias de amor. Aqui e ali surgia, de quando em vez, dentre os rajás, um marajá que construía uma cidade, capturava muitos elefantes, matava muitos tigres e deixava, após o seu rasto, uma tradição do seu esplendor e de seus admiráveis cortejos.

Grande, contudo, era a atividade mental entre os arianos orientalizados; compunham-se grandes poemas épicos que se transmitiam pela tradição oral pois ainda não havia escrita. Havia também muita especulação filosófica e profunda, cujas relações com os sistemas filosóficos do oeste têm que ser, ainda, esclarecidas.

Foi entre 600 e 500 A. C., quando Creso florescia na Lídia e Ciro se estava preparando para arrebatar a Babilônia das mãos de Nabonido, que nasceu na Índia o fundador do budismo. Nasceu em uma pequena comunidade tribal republicana, ao norte de Bengala, nas fraldas do Himalaia, numa região hoje coberta pela jângal, nas fronteiras de Nepal. O pequeno estado era governado por uma família, o clã Sakia de que era um dos membros esse homem, Sidarta Gautama. Sidarta era seu nome pessoal, como Caio, João; Gautama, ou Gôtama, seu nome de família, como César ou Smith; Sakia, o seu nome de clã, como Júlio. A instituição das castas ainda não estava completamente estabelecida na Índia e os brâmanes, embora fossem privilegiados e influentes, ainda não haviam conquistado a supremacia; mas já havia distinções de classe fortemente marcadas e uma barreira, praticamente intransponível, entre os nobres arianos e o povo comum mais escuro. Gautama pertencia à raça dos primeiros. Os seus ensinamentos foram chamados, devemos observar, o Caminho Ariano, a Verdade Ariana.

Somente nos últimos cinqüenta anos é que os crescentes estudos da língua páli, em que foi escrita a maior parte dos documentos originais, deram ao mundo um conhecimento real da vida e do pensamento de Gautama. Anteriormente, a sua história se achava sobrecarregada por monstruosas acumulações de lendas, e a sua doutrina, violentamente deturpada. Mas, agora, possuímos um conhecimento muito humano e muito claro desse homem.

Era ele um formoso jovem de fortuna, que viveu até os vinte e nove anos a vida aristocrática comum do seu tempo. Intelectualmente, não era essa vida das mais satisfatórias. Não havia literatura, exceto a tradição oral dos poemas védicos que era monopolizada, sobretudo, pelos brâmanes; saber e conhecimentos havia ainda menos. O mundo se limitava, ao norte, pelos gelos permanentes do Himalaia, estendendo-se para o sul, indefinidamente… A cidade de Benares, que era governada por um rei, estava distante algumas cem milhas. As principais diversões eram a caça e o amor. Todos os bens que a vida parecia oferecer, Gautama os fruía. Casou-se aos dezenove anos com uma linda prima. Por alguns anos, não tiveram filhos. Caçava, divertia-se, e passeava no seu mundo luminoso de jardins e bosques e arrozais cortados de águas de rega. E foi em meio dessa vida que o assaltou um grande descontentamento, uma grande inquietação. Era a infelicidade de um grande cérebro à procura de emprego. Vivia entre a abundância e a beleza, saltando de prazer em prazer e a sua alma não estava satisfeita. Era como se estivesse ouvindo os apelos da sua raça. Sentiu que a existência que levava era algo de falso e postiço, como que umas férias – férias que já tinham ido demasiado longe.

Como estivesse nessa disposição de espírito, viu quatro coisas que lhe serviram para dirigir o pensamento. Rodava, certo dia, em seu carro, numa excursão de prazer, e eis que passa por um homem extremamente abatido pela idade. A pobre criatura, curvada e frágil, feriu-lhe a imaginação: “Este é o caminho da vida”, disse Chana, seu condutor, e “aí temos todos de chegar”. Ainda estava isso em seu espírito, quando se lhe deparou um homem sofrendo horrivelmente de uma moléstia repugnante. “Isto é a vida”, disse Chana. A terceira visão foi a de um corpo insepulto, inchado, sem olhos, estraçalhado pelas aves e pelos animais e tornado completamente hediondo. “Este é o caminho da vida”, disse Chana.

O sentido da doença e da morte, da insegurança e insatisfação de toda felicidade desceu sobre o espírito de Gautama. E, então, ele e Chana viram passar um desses ascetas errantes que já existiam, em grande quantidade, na Índia. Esses homens viviam sob regras severas e despendiam muito tempo na meditação e na discussão das coisas religiosas. Pois muitos homens, antes de Gautama, nessa monótona terra de sol permanente, já haviam achado a vida perturbadora e misteriosa. Os ascetas, dizia-se, buscavam todos alguma realidade mais profunda para a vida, e um apaixonado desejo de fazer a mesma coisa se apossou de Gautama.

Estava ele entregue à meditação desse projeto, quando, diz a história, lhe trouxeram a notícia de que a sua mulher havia dado à luz o seu primogênito. “Esse é um outro laço a romper”, disse Gautama.

Voltou à vila por entre o regozijo dos seus companheiros de clã. Houve uma grande festa e um baile para celebrar o nascimento desse novo laço. No meio da noite, Gautama despertou em uma grande agonia de espírito, “como um homem a quem se disse que sua casa estava em fogo”. Na ante-sala as bailarinas se achavam deitadas, por entre nesgas de sombras e de luar. Ele chamou Chana e mandou que lhe preparasse a montada. Depois foi mansamente até o limiar do quarto de sua mulher e viu-a, à luz da lâmpada de óleo, dormindo tranqüilamente, rodeada de flores e com o seu.. filho no braço. Sentiu um incrível desejo de tomar a criança num primeiro e último abraço, antes de partir, mas o receio de acordar a esposa o deteve e, afinal, voltou-se e saiu para o grande luar indiano, ao encontro de Chana que o esperava com os cavalos e montou e partiu para o mundo:

Enquanto viajava pela noite adentro, com Chana, parecia-lhe que Mara, o tentador da Humanidade, enchia os espaços e disputava com ele. “Volta”, dizia Mara, “e torna-te rei e eu te farei o maior dos reis. Mas se prosseguires, haverás de fracassar. Nunca te hei de largar os passos. A cobiça, a malícia, ou a ira te trairão, por fim, em algum momento inesperado; mais cedo ou mais tarde, hás de ser meu”.

Cavalgaram toda a noite até muito longe e, pela manhã, pararam fora das terras do seu clã e apearam à margem arenosa de um rio. Aí ele cortou com a sua espada os cachos esvoaçantes do seu cabelo, retirou as jóias e adornos e os mandou, com o seu cavalo e a sua espada, para casa, por Chana. E como prosseguisse na sua marcha, encontrou um maltrapilho e com ele trocou as suas roupas. E tendo-se, assim, despido de todos os seus laços mundanos, sentiu-se livre para buscar a sabedoria. Encaminhou-se, então, para o sul, para um lugar perto da cidade de Rajgir, freqüentado por eremitas e mestres, numas serras que se destacavam das montanhas de Vindhya e corriam para o norte, na região de Bengala. Ali vivia um grupo de homens sábios, reclusos em cavernas indo a cidade apenas para buscar os recursos singelos de que precisavam e repartindo os seus conhecimentos pela palavra àqueles que os buscassem.

Essa instrução deve ter sido muito no estilo das discussões socráticas que se processaram em Atenas , um par de séculos mais tarde. Gautama se fez versado em todas as metafísicas do tempo. Mas, a sua aguda inteligência não se satisfazia com as soluções que elas ofereciam.

O espírito indiano sempre se inclinou a crer que o poder e o saber podiam ser obtidos pelo extremo ascetismo, por jejuns, vigílias, mortificações e penitencias. Essas idéias Gautama pô-las então à prova. Tomou consigo cinco discípulos e companheiros e foi para a jângal, numa garganta das montanhas de Vindhya, e ali se entregou ao jejum e às mais terríveis mortificações. A sua fama se espalhou como o som de um grande sino pendurado na abóbada dos céus”. Mas não lhe trouxe o senso da conquista definitiva da verdade. Um dia ele caminhava para um lado e para outro, tentando pensar, a despeito do seu estado de fraqueza. De repente tremeu e caiu sem consciência. Quando recuperou os sentidos, a inutilidade desses processos semimágicos de atingir a sabedoria se havia tornado clara para ele.

Seus cinco companheiros ficaram pasmados e horrorizados quando ele pediu o alimento comum e se recusou a continuar no regime das mortificações. Compreendera que, seja lá qual for a verdade a que o homem possa atingir, ele a alcançará melhor por meio de um cérebro alimentado em um corpo sadio. Tal concepção era absolutamente estranha às idéias da terra e do tempo. Os seus discípulos o abandonaram e partiram melancolicamente para Benares. Cessou de tocar o grande sino. Gautama, o admirável, tinha caído.

Por algum tempo, Gautama errou, sozinho, pela terra – a mais solitária figura na história a lutar em busca de luz.
Quando o espírito luta com um grande e complexo problema, ele avança e se senhoreia das posições, passo a passo, sem perceber quase as conquistas feitas, até que, de repente, com um efeito de súbita iluminação, entra na posse da vitória. Assim, parece, sucedeu a Gautama. Estava ele sentado sob uma grande árvore, ao lado de um rio, para comer, quando o assaltou esse senso de claridade e lucidez. Pareceu-lhe que via a vida em toda luz. Consta que ele se conservou sentado todo o dia e toda a noite, imerso em profunda meditação, e depois se ergueu para comunicar ao mundo a sua visão.

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