Gautama: o Aparecimento e Difusão do Budismo

O Evangelho de Gautama Buda

A doutrina fundamental de Gautama, que só está agora tornando acessível para nós, pelo estudo das fontes originais, é clara, ,simples e em íntima harmonia com as idéias modernas. É indiscutivelmente a conquista de uma das mais penetrantes inteligências que o mundo conheceu, em todos os tempos.

Possuímos o que são, quase certamente, os pontos capitais autênticos do seu discurso aos cinco discípulos e que consubstanciam a parte essencial de sua doutrina. Todas as misérias e descontentamentos da vida, ele os filia ao egoísmo insaciável. O sofrimento, ensina ele, é devido à ambição do indivíduo, ao tormento do desejo imoderado. Enquanto um homem não vence toda espécie de ambição pessoal, a sua vida é perturbação e o seu fim, tristeza. Há três formas principais que assumem as ambições da vida e todas são más. A primeira é o desejo de satisfazer os sentidos, sensualidade. A segunda é o desejo de imortalidade pessoal. A terceira é o desejo de prosperidade, mundanismo. Tudo isso deve ser vencido – quer dizer, o homem tem de deixar de viver para si mesmo – para que a vida possa ser serena. Mas quando forem, em realidade, vencidos e não mais governarem a vida do homem; quando o pronome da primeira pessoa desaparecer dos seus pensamentos íntimos, então, ele atingiu a mais alta sabedoria, o Nirvana, a serenidade de alma. Pois o Nirvana não significava, como muitos pensam erradamente, extinção e aniquilamento, mas a extinção e aniquilamento dos fúteis objetivos pessoais que tornam, inevitavelmente, a vida mesquinha, ou lastimável, ou horrível.

E aqui temos, certamente, a mais completa análise do problema da paz da alma. Toda religião digna do seu nome, toda filosofia nos avisa e nos ensina que devemos… nos perder a nós mesmos em qualquer coisa maior que nós próprios. “Todo aquele que salvar a sua vida, perdê-la-á” : é, exatamente, a mesma lição.

O ensinamento da história, está estritamente de acordo com esse ensinamento de Buda. Não há, como temos visto, nem ordem social, nem segurança, nem paz ou felicidade, nem justa e honesta chefia ou realeza, a não ser que os homens se percam a si mesmos em qualquer coisa maior do que eles próprios. O estudo do progresso biológico revela, por sua vez, exatamente, o mesmo processo – a submersão do estreito círculo da experiência individual em um ser mais amplo… conhecido dos drávidas, dos Atlântes, dos Gnósticos Primitivos. Esquecer-se a si mesmo em interesses maiores, é escapar da prisão.

A abnegação de si mesmo deve ser completa. Do ponto de vista de Gautama, esse terror da morte, essa cobiça de uma continuação sem-fim de sua insignificante e grosseira vida individual, que levou o egípcio e aqueles que aprenderam dele às propiciações e encantamento dos templos, era coisa tão mortal, tão hedionda e tão má como a concupiscência, a avareza ou o ódio. A religião de Gautama se opõe radicalmente às religiões da “imortalidade”, pois a imortalidade mais demonstra uma forma de avareza, um insaciável instinto de sobrevivência a saciar os próprios desejos. E o seu ensinamento toma a mesma rude posição contra o ascetismo; considerado como uma simples tentativa de conquistar força pessoal por meio de penas pessoais, pois a verdade está em doar-se de si e não a atitude egocêntrica da própria divinização. Mas quando chegamos à regra da vida, ao Caminho Ariano, pelo qual devemos escapar às três ambições baixas que desonram a vida humana, então o ensino já não é tão claro. Não é tão claro por uma razão manifesta: Gautama não tinha nenhum conhecimento ou visão da história; ele não tinha nenhum claro senso da vasta e complexa aventura de vida que se desdobra pelo espaço e pelo tempo. O seu espírito estava confinado às idéias do seu tempo e do seu povo, e o espírito do povo era moldado nas noções de uma perpétua repetição, de mundo que se seguia a mundo e de Buda que se seguia a Buda, num estagnado e circular universo, mas um templo cíclico que a humanidade deveria recuperar desestressando-se sem perder das mãos as rédeas do próprio progresso evolutivo. A idéia da humanidade como uma grande Fraternidade a buscar um destino sem-fim, sob um Deus de Justiça, a idéia que já se achava alvorecendo na consciência semítica, na Babilônia, por esse tempo, não existia em seu mundo. Todavia, a sua concepção do Caminho dos Oito Passos é, apesar de tudo, e dentro dessas limitações, profundamente sábia.

Recapitulemos, brevemente, os oito elementos do Caminho Ariano. Primeiro, Idéias Diretas ou Certas : Gautama colocava o exame severo das apreciações e idéias, a insistência sobre a verdade, como a primeira coisa a buscar, o primeiro dever dos seus adeptos e fiéis. Nada de desvio para vistosas superstições. Ele condenou, por exemplo, a crença dominante na transmigração das almas. Em um famoso diálogo budista primitivo, há uma análise destruidora da idéia de uma alma individual imortal. Depois das Idéias Direitas, vêm as Aspirações Direitas ou Elevadas: porque à natureza repugna o vácuo e desde que os desejos inferiores devem ser expulsos, outros desejos devem ser encorajados – amor ao serviço por outrem, desejo de fazer e assegurar justiça e coisas desta natureza. O budismo primitivo e não corrompido não visava a destruição do desejo, mas a mudança dos desejos. Devoção à ciência e à arte, ou ao melhoramento das coisas, está manifestamente em harmonia com as Aspirações Direitas do budismo, desde que estivesse livre de inveja ou do desejo de fama. Linguagem Direita, Conduta Direita e Meio de Vida Direito não precisam, aqui, de desenvolvimento. Em sexto lugar, nesta lista, vem o Esforço Direito. ou Eficaz, pois Gautama não tinha nenhuma tolerância por boas intenções e aplicação negligente; o discípulo tinha que manter uma aguda visão crítica de suas atividades. O sétimo elemento do Caminho, Atenção Direita, é a vigilância constante contra os lapsos e os descuidos de sentimento pessoal ou de glória, em qualquer coisa que se faça ou se deixe de fazer. E, finalmente, Êxtase Direito, que condenava, ao que parece, esses êxtases e transportes indefinidos do devoto, essas exaltações sem sentido, como as que acompanhariam, por exemplo, o bimbalhar do sistrum alexandrino.

Não discutiremos aqui a doutrina budística do Karma, porque pertence a um mundo de pensamento que vai desaparecendo, o conhecimento correto das leis que nos regem, para que conhecedores das leis estas mesmas nos libertem. Supunha-se que o bem ou mal de cada vida determinaria a felicidade ou miséria de alguma outra vida subseqüente, que era, por algum meio inexplicável, identificada com a sua predecessora.

Hoje compreendemos que uma vida continua em suas conseqüências para sempre, mas não nos sentimos em nenhuma necessidade de supor que essa vida particular seja retomada ou recomeçada. A mentalidade indiana estava cheia dessa idéia de recorrência cíclica; supunha-se que cada coisa voltava de novo ao seu princípio. É uma suposição muito natural aos homens; assim, com efeito, parecem ser as coisas, até que as examinamos e analisamos. A ciência moderna tornou claro que não se dá essa exata repetição como estaríamos inclinados a supor; cada dia é por uma quantidade infinitesimal um pouco mais longo do que o dia anterior; nenhuma geração repete exatamente a geração anterior; a história nunca se repete a si mesma, mas os fatos adentram em recorrência se deles não se toma consciência; a mudança, nós agora compreendemos, é inexaurível; todas as coisas são eternamente novas. Cada fim é um novo começo, e a cada nível o ser encontra um próximo na ascensão. Mas estas diferenças entre as nossas idéias gerais e as que Buda deve ter possuído não nos devem, de nenhum modo, impedir de apreciar a sabedoria sem precedentes, a bondade e a grandeza desse plano de vida emancipada, que Gautama delineou por volta do sexto século antes de Cristo.

E se, em teoria, ele não conseguiu reunir todas as vontades dos convertidos numa só multifária atividade de nossa espécie em luta contra a morte, em, todos os seus aspectos, no tempo e no espaço, ele conseguiu, na prática, fazer de sua própria vida e das de todos os seus discípulos imediatos uma progressiva aventura, a aventura de pregar e espalhar em um mundo febril a doutrina e os métodos do Nirvana ou da serenidade da alma. Para eles, pelo menos, a doutrina era plena e completa. Mas, todos os homens podem pregar ou ensinar; doutrinar, ensinar, é apenas uma das muitas funções da vida fundamentalmente honrada ou direita. Para um espírito moderno parece tão razoável e tão aceitável que um homem possa buscar e difundir o saber em perfeita serenidade e esquecimento de si mesmo, quanto, embora talvez com maiores dificuldades, cultivar o solo, governar uma cidade, fazer estradas, construir casas ou planejar máquinas. E isto se achava implícito nos ensinamentos de Gautama. Deu-se, porém, com certeza, maior relevo ao ensino em si mesmo, ao abandono das atividades ordinárias da vida do que ao enobrecimento dessa própria vida, mas o enobrecimento da vida às vezes torna-se o abandono da vida ordinária.
Também em outros aspectos o budismo primitivo diferia de qualquer outra religião que tenhamos considerado até aqui. Era, primariamente, uma religião da conduta e não uma religião de observâncias e de sacrifícios. Não mantinha templos; e, desde que não possuía sacrifícios, não tinha nenhuma ordem sagrada de sacerdotes: Também não tinha teologia. Nem afirmou, nem negou a realidade dos inumeráveis e freqüentemente grotescos deuses que eram cultuados, na Índia, por aquele tempo. Ignorou-os.

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