Gautama: o Aparecimento e Difusão do Budismo

O Budismo e Asoka

Desde o princípio, essa nova doutrina foi falseada. Uma das suas corrupções talvez fosse inerente ao próprio ensinamento. Como os homens não tinham ainda nenhuma percepção do contínuo esforço progressivo da vida, era muito fácil escorregar da idéia de renúncia a si mesmo para a idéia de renúncia à vida ativa. Como as próprias experiências de Gautama o revelaram, é mais fácil fugir deste mundo do que de si mesmo. Os seus discípulos primitivos foram pensadores e mestres zelosos e ardentes, mas a queda em mera reclusão monástica era demasiado fácil, particularmente no clima da Índia, onde uma extrema simplicidade de vida é cômoda e atraente e o esforço físico mais laborioso do que em qualquer outra parte do mundo.

E o destino de Gautama foi desde cedo, como tem sido o da maior parte dos fundadores de religião desde o seu tempo, o de ser transformado em um prodígio pelos discípulos menos inteligentes, nos seus esforços para impressionar o mundo exterior. Já mostramos como um adepto devoto não se podia coibir de crer que o momento da irradiação mental do mestre fosse, necessariamente, marcado por um ataque epiléptico dos elementos. Essa é uma pequena amostra da vasta acumulação de vulgares maravilhas que apareceram em torno da memória de Gautama.
Não resta dúvida que para a grande multidão dos seres humanos, então, como hoje, a simples idéia da emancipação de si mesmo, da emancipação do próprio eu, é extremamente difícil de perceber. É provável que, mesmo entre os mestres que Buda enviava de Benares, muitos fossem os que não a percebiam e ainda menos a podiam transmitir aos seus ouvintes. O seu ensino muito naturalmente assumiu o aspecto de salvação, não de si mesmo – essa idéia era superior a eles – mas dos infortúnios e sofrimentos de agora e depois. Nas superstições existentes entre o povo e especialmente na idéia da transmigração da alma depois da morte, embora fosse essa idéia contrária ao próprio ensino do mestre; eles encontraram o material de medo sobre o que podiam trabalhar. Fizeram sentir às pessoas do povo que a virtude se impunha sob pena de voltarem a viver de novo em formas degradadas ou miseráveis, ou de caírem em algum dos inumeráveis infernos de tormentos com que já haviam os mestres bramânicos familiarizado os seus espíritos. Representaram Buda como o salvador de tormentos quase ilimitados.
Parece não haver limite para as mentiras que discípulos honestos mas estúpidos entendem dever pregar para a glória do seu mestre e para o que consideram o sucesso de sua propaganda. Homens a quem repugnaria dizer uma mentira na vida quotidiana, tornam-se falsos, mentirosos e sem escrúpulos quando se entregam ao trabalho de propagandista; é um dos mais estranhos absurdos da nossa natureza humana. Aquelas almas honestas – pois a maioria era, indubitavelmente, honesta – estavam dentro de pouco contando aos seus ouvintes os milagres que se realizaram no nascimento de Buda já não o chamavam Gautama, porque era um nome demasiado familiar – os feitos de força de sua juventude, as maravilhas e prodígios de sua vida quotidiana, terminando com uma espécie de iluminação do seu corpo no momento da morte.

Naturalmente era impossível acreditar que Buda fosse o filho de um pai mortal. Fora miraculosamente concebido ao sonhar sua mãe com um lindo elefante branco. Ele próprio fora, anteriormente, um maravilhoso elefante de seis presas, que, generosamente, as dera a um caçador necessitado – chegando mesmo a ajudá-lo a serrá-las. E assim por diante. Mas quem sou eu para afirmar que Mestre é somente o filho de um matrimônio perfeito de uma concepção amorosa e não libidinosa visando uma característica genética mais hominal para os descendentes de nossa raça, voltada à ânsia de auxiliar um mundo envolto em um barbarismo retrocedente, e cuja afirmação me torna o objeto do escárnio e da ironia, um objeto visto apenas como uma formação escolástica e ignorante de uma mãe e um pai, que trabalhavam e pregavam, e necessitavam alguém para seguir-lhes os passos.
Além disso, brotou uma teologia em torno de Buda. Descobriu-se que ele era deus. Era um da série de seres divinos, os Budas. Havia um imortal “Espírito de todos os Budas”, havia uma grande série de Budas passados e de Budas ainda por vir. Mas não podemos prosseguir nessas complicações de teologia asiática. “Sob a dominante influência dessas imaginações doentias, os ensinamentos morais de Gautama quase desapareceram de vista. As teorias cresceram e floresceram; cada novo passo, cada hipótese nova, exigia outra; até que todo o céu ficou cheio com as coisas forjadas pelo cérebro, e as lições mais simples e mais nobres do fundador da religião foram sufocadas debaixo da massa brilhante de sutilezas metafísicas”.

No terceiro século A. C., o budismo se achava em caminho da riqueza e poder; e os pequenos grupos de simples cabanas em que os mestres da Ordem se reuniam, na estação das chuvas, estavam sendo substituídos por edifícios monásticos. A esse período pertencem os começos da arte budística. Ora, se recordamos quão recente era a aventura de Alexandre, que todo o Punjab se achava ainda sob o domínio dos selêucidas, que toda a Índia abundava em aventureiros gregos e que havia ainda aberta e livre comunicação por mar e por terra com Alexandria, não é grande maravilha encontrar essa primitiva arte budista com um caráter acentuadamente grego e com o seu desenvolvimento extraordinariamente influenciado pelo novo culto alexandrino de Serapis e de Ísis.
O reino de Gândara, na fronteira ao noroeste, perto de Peshawar, que floresceu no terceiro século A.C., era um ponto típico do encontro dos mundos helênico e indiano.

Aí é que se encontram as esculturas budistas mais primitivas e de mistura com outras as figuras reconhecidamente de Serapis, Ísis e Hórus, que já se achavam fundidas na teia legendária que envolvia Buda. Sem dúvida, os artistas gregos que vieram para Gândara relutaram em abandonar os seus temas familiares. Mas Ísis já não é Ísis e sim Hariti, uma deusa da peste que Buda converteu e tornou benevolente. Foucher acompanha Ísis passando daí para a China, mas, então, outras influências se acham igualmente em ação e a história se torna demasiado complexa para nós a deslindarmos na ressurreição mítica dos arquétipos sempre presentes no sono de consciência, até que C.G.Jung, conseguiu a fórmula para com estes mesmos acordarmos. A China tinha uma divindade tauísta, a Sagrada Mãe, a Rainha do Céu, que tomou o nome (originariamente masculino) de Kuan-yin e que veio a se assemelhar, em figura, muito intimamente, com Ísis. A figura de Ísis, sentimos, deve ter influenciado o modo de , tratar Kuan-yin. Como Ísis, ela era também a Rainha dos Mares, Stella Maris, mas não confundamos a representação da sabedoria humana com a carência materna, pedindo força à uma imagem que representa a nossa própria Sabedoria em ciências de causas e um Buda representando o Amor pela raça presente no fim do mal, para o fim do sofrimento, e assim o profeta se faz vivo na atitude presente que molda o mundo futuro dos efeitos e suas sucessões.

No Japão, era chamada Kuanon. Parece ter havido um constante intercâmbio de formas exteriores de religião, entre o leste e o oeste. Lemos nas Viagens de Huc, quanto o surpreenderam e embaraçaram, a ele e aos seus companheiros missionários, essa tradição comum de culto. “A cruz”, diz ele, “a mitra, a dalmática, a capa d'asperges que o Grande Lama usa nas suas jornadas, ou quando celebra alguma cerimônia fora do templo; o serviço com duplos coros, a salmodia, os exorcismos; o incensório suspenso de cinco correntes, que se pode abrir ou fechar à vontade, as bênçãos dadas pelo Lama, estendendo a mão direita sobre as cabeças dos fiéis; o rosário, o celibato eclesiástico, o retiro espiritual, as ladainhas, a água-benta, tudo isso são analogias entre os budistas e nós próprios”.

O culto e a doutrina de Gautama, recolhendo corrupções e variações tanto do bramanismo quanto do helenismo, difundiram-se por toda Índia, através de uma crescente multidão de mestres, no quarto e terceiro séculos A. C. Por algumas gerações, pelo menos, reteve muito da beleza moral e alguma coisa da simplicidade da sua primeira fase.
Muita gente que não tem nenhuma capacidade intelectual para perceber o sentido de auto-abnegação e desinteresse, é, entretanto, capaz de apreciar o esplendor da existência real dessas qualidades. O budismo primitivo estava, por certo, produzindo vidas de grande nobreza, e não é só pela razão que se desperta a resposta latente em nossos espíritos às solicitações e apelos da nobreza.

O budismo difundiu-se não por causa das concessões que faz às imaginações vulgares, mas a despeito delas. Difundiu-se, porque muitos dos budistas primitivos eram mansos e doces, gente caridosa e nobre e admirável, que compelia à crença na fé que os sustinha.

Muito cedo, em sua carreira, o budismo entrou em conflito com as crescentes pretensões dos brâmanes cuja riqueza também não deixa de encontrar-se em sua filosofia já que algo do tantrismo não asceta passa-lhe por alguns de seus olhos.

Como já o notamos, a casta sacerdotal, nos tempos de Gautama, havia iniciado a luta para dominar a vida indiana. Já tinha grandes vantagens. Possuía o monopólio da tradição e dos sacrifícios religiosos. Mas a sua força estava sendo ameaçada pelo desenvolvimento da realeza, pois homens que se estavam fazendo chefes de clã e reis não eram, ordinariamente, da casta bramânica.

A realeza recebeu novo impulso com as invasões persas e gregas do Punjab. Já consideramos o nome do rei Porus, que, a despeito dos seus elefantes, Alexandre derrotou e transformou em um sátrapa. Procurou também o campo grego, sobre o Indo, um certo aventureiro chamado Chandragupta Mauria, a quem os gregos chamaram Sandracoto, com um plano para a conquista da região do Ganges. O plano não foi aceito pelos macedônios, que se tinham revoltado contra a continuação da marcha para a Índia, e o aventureiro teve que fugir do campo. Ele errou por entre as tribos da fronteira ao nordeste, assegurou-se do seu auxílio e depois de ter Alexandre partido conquistou o Punjab, expulsando os representantes macedônios. Conquistou depois a região do Ganges ( 321 A. C. ) , conduziu uma guerra vitoriosa ( 303 A. C. ) contra Seleuco I, quando este tentou reconquistar o Punjab, consolidou um grande império que cobria toda a planície do norte da Índia, do mar do oeste ao de leste. E entrou em conflito com o crescente poder dos brâmanes, o conflito entre a coroa e o sacerdócio, o mesmo conflito a cuja deflagração assistimos na Babilônia, no Egito e na China.

Ele viu na doutrina em expansão do budismo uma aliada contra o crescimento do sacerdócio e da casta. E sustentou, então, e deu recursos e fundos à ordem budística e encorajou e animou o seu ensino.
Foi sucedido por seu filho, que, por sua vez, foi sucedido por Asoka ( 264 a 227 A. C. ) , um dos maiores monarcas da história, cujos domínios se estenderam do Afeganistão ao que é hoje a província de Madras.
Ele é o único monarca militar, na história, que abandonou a guerra depois da vitória. Havia invadido Kalinga ( 255 A. C. ) , uma região a leste da costa de Madras, talvez com a intenção de completar a conquista da península indiana. A expedição foi vitoriosa, mas ele desgostou-se pelo que viu das crueldades e horrores da guerra. Declarou, então, em certas inscrições que ainda existem, que não mais buscaria conquistas pela guerra, mas pela religião, e o resto de sua vida foi devotada à difusão do budismo pelo mundo.

Parece ter governado o seu vasto império em paz e com grande capacidade. Não era um simples fanático religioso. Mas, no ano de sua primeira e única aventura guerreira, entrou para a comunidade budista como um leigo, e, alguns anos mais tarde, tornou-se membro pleno da Ordem e se devotou à conquista do Nirvana pelo Caminho dos Oito Passos. A sua vida mostra como eram, então, inteiramente compatíveis com essa mostra de vida às atividades mais úteis e benéficas. Aspirações Altas, Esforço Eficaz e Vida Digna distinguiram a sua carreira. Organizou uma grande perfuração de poços na Índia e o plantio de árvores para sombra. Nomeou funcionários para a inspeção dos trabalhos de caridade. Fundou hospitais e jardins públicos. Manteve hortos para o cultivo de plantas medicinais. Tivesse ele um Aristóteles para inspirá-lo e teria, sem dúvida, atribuído fundos para a pesquisa científica em grande escala. Criou um ministério para cuidar dos aborígines e das raças dominadas. Dispôs sobre a educação das mulheres. Fez – foi o primeiro monarca a fazer – uma tentativa para educar o seu povo numa visão comum dos fins da vida e do modo de conduzi-la.

Distribuiu largas doações às Ordens budistas de ensino e buscou estimulá-las ao estudo mais aprofundado de sua própria literatura. Sobre toda a Índia fez gravar longas inscrições dos ensinamentos de Gautama; e são os simples e humanos ensinamentos e não os acréscimos absurdos posteriores que aí se encontram. Trinta e cinco das suas inscrições sobrevivem ainda hoje. Enviou, além disso, missionários para ensinar, por todo o mundo, a doutrina razoável e nobre do seu mestre, para Cachemìra, para o Ceilão, para os Selêucìdas e para os Ptolomeus. Foi uma dessas missões que levou o galho da árvore Bo, de que já falamos, para o Ceilão.

Por vinte e oito anos, Asoka trabalhou sadiamente pelas necessidades reais dos homens.

Por entre as dezenas de milhares de nomes de monarcas que enchem as colunas da história, suas majestades e serenidades e altezas reais e coisas que tais, o nome de Asoka brilha e brilha quase sozinho, como uma estrela. Do Volga ao Japão, o seu nome é honrado até hoje. A China, o Tibete e mesmo a Índia, embora tenha deixado a sua doutrina, preservam a tradição de sua grandeza. Mais homens vivos veneram, hoje, a sua memória do que todos os que, alguma vez, ouviram os nomes de Constantino ou Carlos Magno.

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