Doutrina e lenda em conflito
Essa é a história singela de Gautama, como a “extraímos da comparação dos escritos primitivos. Mas, os homens comuns têm que ter as suas vulgares maravilhas e os seus baratos milagres.
Não é nada para eles que esse pequeno planeta produza, afinal, um homem que pense o passado e o futuro e a natureza essencial da existência. Temos que sofrer as tolas exaltações dos fatos, como esta de algum eminente escriba páli:
“Quando o conflito começou entre o Salvador do Mundo e o Príncipe do Mal, um milheiro de espantosos meteoros caíram do céu … Os rios correram para as suas nascentes; picos e altíssimas montanhas, onde árvores sem conta haviam crescido, por tempos imemoriais, rolaram sobre a terra… o sol se envolveu em trevas e um exército de espíritos sem cabeça encheu os espaços”.
De tais fenômenos, a história não preservou nenhuma prova. Ao revés disso, temos somente a figura de um solitário caminhando para Benares.
Uma atenção extraordinária foi dada à árvore sob que Gautama teve esse senso de claridade mental. Era uma árvore do gênero Ficus que desde o princípio foi tratada com particular veneração. É chamada a árvore Bo. Há muito que morreu, mas muito próximo vive outra grande árvore, que pode ser sua descendente, e em Ceilão viceja, até hoje, uma árvore, a mais velha árvore histórica do mundo, que sabemos com certeza ter sido plantada de um galho da árvore Bo, no ano de 245 A. C. Daquele tempo até hoje, tem sido cuidadosamente tratada e regada; seus grandes ramos são sustentados por pilares e a terra foi levantada em torno dela, de modo que pode sempre lançar as suas novas raízes.
Auxilia-nos a compreender a brevidade de toda a história humana, ver tantas gerações medidas pela duração de uma única árvore. Os discípulos de Gautama, infelizmente, cuidaram mais da preservação de sua árvore que do seu pensamento, o qual, desde o princípio, falsearam e deformaram.
Em Benares, Gautama procurou os seus cinco discípulos que ainda levavam a vida ascética. Há uma descrição da sua hesitação em recebê-lo, quando o viram aproximar-se. Era um apóstata. Mas uma certa força de personalidade acabou por lhes vencer a frieza e ele os fez ouvir as suas novas convicções. Por cinco dias, prosseguiu a discussão. Quando, afinal, os convenceu de que se achava, realmente, esclarecido, os seus discípulos o saudaram como o Buda. Havia já naqueles tempos uma crença, na Índia, de que, a grandes espaços de tempo, a Sabedoria voltava à terra e se revelava à humanidade por intermédio de uma pessoa escolhida, conhecida como o Buda. Segundo a crença indiana, houve muitos desses Budas; Gautama Buda é, apenas, o último de uma série. Mas é duvidoso que ele próprio tenha aceito esse título ou reconhecido essa teoria. Em seus discursos, nunca se chamou a si mesmo de Buda.
Ele e os seus recuperados discípulos formaram, então, uma espécie de Academia no Parque dos Veados, em Benares. Fizeram cabanas para eles próprios e receberam outros discípulos, até o número de sessenta ou mais. Na estação das chuvas, conservavam-se em suas cabanas, discorrendo e debatendo, e na estação da seca se dispersavam pelo país, cada um dando a sua versão dos novos ensinamentos. Todo esse ensino era feito, ao que parece, pela palavra oral. Não havia, provavelmente, ainda escrita na Índia. Devemos lembrar que, ao tempo de Buda, é duvidoso se a própria Ilíada já tivesse sido escrita. Provavelmente, o alfabeto mediterrâneo, que é a base da maior parte das escritas indianas, não havia ainda alcançado a Índia. O mestre, então, elaborou e compôs versos breves e expressivos, aforismos e listas de “pontos”, que eram desenvolvidos nos discursos dos seus discípulos. Auxiliava-os, grandemente, a reter esses aforismos e pontos a circunstância de serem todos devidamente numerados. O espírito moderno se impacienta com a tendência do pensamento indiano de definir as coisas numericamente, o Caminho dos Oito Passos, as Quatro Verdades, e assim por diante, mas tal enumeração era uma necessidade mnemônica de um mundo sem possibilidades de documentação.