Dois grandes mestres chineses
Julga-se que as vastas doações de Asoka corromperam, afinal, o, budismo, atraindo para a sua Ordem grande número de aderentes insinceros e mercenários, mas não há dúvida que a sua difusão pela Ásia foi, largamente, devida ao seu estímulo.
Através do Afeganistão e Turquestão e pela Ásia Central, o budismo atingiu finalmente a China. A doutrina budista alcançou a China, diz o Professor Pramata Nath Bose, por volta de 64 A. D., no reinado do imperador Ming-Ti, da dinastia Han. O Pândita Kasiapa foi o apóstolo da China, seguido por uma série de outros grandes mestres. Os grandes dias da propaganda budista na China foram os dos terceiro e quarto séculos A. D. Sofreu depois terríveis perseguições e retornou á preeminência com a vinda da dinastia Tang.
O budismo encontrou na China uma religião já estabelecida, o tauísmo, popular e dominante, e que era o desenvolvimento de antigas e primitivas práticas ocultas e mágicas. Foram reorganizadas em um culto distinto por Chang-Tao-Ling, nos tempos da dinastia Han. Tao significa Caminho, o que corresponde, muito de perto, à idéia do Caminho Ariano. As duas religiões, depois de uma luta inicial, desenvolveram-se lado a lado e sofreram as mesmas modificações, de modo que, hoje, as suas práticas externas são muito semelhantes. O budismo também encontrou o confucionismo, que era ainda menos teológico e ainda mais um código de conduta pessoal. E encontrou, ainda, finalmente, os ensinamentos de Lao-Tse, “filósofo anarquista, evolucionista, pacifista e moral”, que não eram tanto uma religião quanto uma regra filosófica de vida. Os ensinamentos de Lao-Tse foram mais tarde incorporados à religião tauísta por Chen Tuan, o fundador do moderno tauísmo.
Confúcio, o fundador do confucionismo, como o grande mestre do sul Lao-Tse e como Gautama, viveu no sexto século A.C. A sua vida tem alguns interessantes paralelismos com as de alguns filósofos gregos de tendências políticas do quinto e quarto séculos. O sexto século A.C. cai no período atribuído pelos historiadores chineses à dinastia Chow, mas naqueles dias o governo dessa dinastia se tornara pouco mais do que nominal; o imperador celebrava os sacrifícios tradicionais do Filho do Céu e gozava de uma certa veneração formal.
Mesmo esse império nominal não atingia sequer uma sexta parte da China de hoje. Por esse tempo; praticamente; a China era uma multidão de estados divididos pela guerra e expostos aos bárbaros do norte.
Confúcio era um súdito de um desses estados, Lu; era aristocrata de nascimento, mas pobre; e, depois de ocupar várias posições oficiais, fundou uma espécie de Academia, em Lu, para a pesquisa e o ensino da Sabedoria. Também encontramos Confúcio viajando pela China, de estado a estado, procurando um príncipe que o tomasse para conselheiro e se transformasse no centro de um mundo reformado. Platão, dois séculos mais tarde, exatamente com o mesmo espírito, foi o conselheiro do tirano Dionísio de Siracusa; e já observamos as atitudes de Aristóteles e Isócrates para com Filipe da Macedônia.
Os ensinamentos de Confúcio se centralizavam na idéia de uma vida nobre, que ele consubstanciava num ideal ou padrão, o Homem Aristocrático. Essa expressão é traduzida, freqüentemente, em inglês, por Pessoa Superior, mas como “superior” e “pessoa”, do mesmo modo que “respeitável” e “gentil” desde muito se tornaram termos um tanto humorísticos e pejorativos, essa tradução não é leal com o confucionismo. Ele apresentou, ao seu tempo, o ideal de um devotado homem público. O aspecto público era muito importante para ele. Foi muito mais um pensador político construtivo do que Gautama ou Lao-Tse. O seu espírito só impressionara com as condições da China e buscou trazer à existência o Homem Aristocrático para, de um modo geral, produzir o estado nobre. Uma das suas sentenças deve ser, aqui, citada : “É impossível retirar-se do mundo e associar-se com as aves e os animais que não têm nenhuma afinidade conosco. A quem deveria eu associar-me, senão com os homens sofredores? A desordem que predomina é o que exige e clama os meus esforços. Se governassem o reino princípios acertados, não haveria necessidade para mim de mudar o seu estado”.
A base política de sua doutrina parece ser característica das idéias morais chinesas; há aí referência muito mais direta ao Estado do que no caso da maioria das doutrinas morais e religiosas da Europa e da Índia. Por algum tempo, ele foi nomeado magistrado em Chung-Tu, uma cidade do ducado de Lu, e buscou, então, regular a vida com extraordinária minúcia, subordinando, de fato, cada relação e cada ação às regras de uma elaborada etiqueta. “O cerimonial de cada ato, tal como estamos acostumados a ver somente nas cortes dos governantes ou nas casas de altos dignitários, tornou-se obrigatório para o povo em geral e todas as coisas da vida quotidiana foram subordinadas a regras rígidas. Até o alimento que as diferentes classes do povo deviam usar, foi regulado; os homens eram separados, na rua, das mulheres; até a espessura dos caixões mortuários e a forma e situação dos túmulos foram sujeitas a regras”.
Tudo isso é, como se diz, muito chinês. Nenhum outro povo jamais se aproximou da ordem moral e da estabilidade social pelo caminho das boas maneiras. Entretanto, na China, temos que reconhecer que os métodos de .Confúcio tiveram um enorme efeito, e nenhuma nação no mundo tem, hoje, semelhante tradição universal de decoro e comedimento.
Mais tarde, a influência de Confúcio sobre o seu duque foi solapada e destruída e ele retirou-se, de novo, para a vida privada. Os seus últimos anos foram entristecidos pela morte de alguns dos seus mais promissores discípulos. “Nenhum governante inteligente”, disse ele, “aparece para me tomar como seu mestre e o tempo de morrer chegou”.
Mas ele morreu para viver. Hirth afirma: “Não pode haver dúvida que Confúcio teve maior influência no desenvolvimento do caráter nacional chinês do que muitos imperadores juntos, portanto, uma das figuras essenciais a serem consideradas em relação a qualquer história da China. Que ele pudesse influenciar em tal grau a sua nação, parece-me mais devido à peculiaridade da nação do que a de sua própria personalidade. Vivesse ele em qualquer outra parte do mundo e o seu nome seria, talvez, esquecido. Como vimos, formou o seu caráter e os seus julgamentos pessoais sobre a vida do homem, por um estudo cuidadoso de documentos intimamente relacionados com a filosofia moral cultivada pelas gerações anteriores. O que pregava, pois, para os seus contemporâneos não era tudo novidade para eles; mas tendo ele próprio, no estudo dos velhos registros, ouvido a voz apagada dos sábios do passado, tornou-se, por assim dizer, o megafone, através do qual se exprimiam para a nação, as idéias e julgamentos que ele colhera nas fontes e reservas originais da própria nação… A grande influência da personalidade de Confúcio, na vida nacional da China, não foi devida somente aos seus escritos e aos seus ensinamentos, recordados por outros, mas também aos seus atos. O seu caráter pessoal, descrito pelos seus discípulos e por escritores posteriores, alguns dos quais podem , ter obedecido inteiramente à lenda, tornou-se o modelo para os milhões daqueles que se sentem inclinados a imitar as maneiras exteriores de um grande homem… Seja lá o que fosse que fizesse em público era regulado até o menor detalhe, por cerimonial. Isso não era nenhuma invenção dele próprio, pois a vida em cerimonial havia sido cultivada por muitos séculos, antes de Confúcio; mas a sua autoridade e exemplo muito fizeram para perpetuar o que ele considerava desejáveis práticas sociais”.
A doutrina de Lao-Tse, que foi por muito tempo o zelador da biblioteca imperial da dinastia Chow, era muito mais vaga, fugidia e mística do que a de Confúcio. Parece ter pregado uma indiferença estóica aos prazeres e poderios do mundo e o retorno a uma simples vida imaginária do passado. Deixou escritos, em estilo muito contraído e muito obscuro.
Escreveu por enigmas. Depois de sua morte, os ensinamentos de Lao-Tse, como os ensinamentos de Gautama Buda, foram corrompidos e dominados por lendas e foram acrescidos das observâncias e superstições mais complexas e mais extraordinárias. Já a doutrina de Confúcio não foi tão sobreposta e dominada, porque era limitada e clara e direita, não se prestando a tais deformações.
Os chineses falam do budismo e das doutrinas de Lao-Tse e de Confúcio, como os Três Ensinamentos. Juntos constituem a base e o ponto de partida de todo o pensamento chinês posterior. O seu completo estudo é um preliminar necessário para o estabelecimento de qualquer comunhão moral e intelectual entre o grande povo do Este e o mundo ocidental.
Há algumas coisas em comum a serem notadas em todos esses três mestres – dos quais Gautama foi, indiscutivelmente, o maior e o mais profundo cujas doutrinas dominam, até hoje, ó pensamento da grande maioria dos seres humanos; como há certos outros aspectos em que os seus ensinamentos contrastam com os pensamentos e sentimentos que, muito cedo, iriam tomar posse no mundo ocidental. Em primeiro lugar, são doutrinas pessoais e tolerantes; são doutrinas de uma igreja ou de um governo geral. E não apresentam nada, seja em favor, seja contra a existência dos deuses correntes. Os filósofos atenienses, deve ser observado, tinham exatamente o mesmo alheamento teológico; Sócrates dispunha-se completamente a curvar-se, polidamente, ou a sacrificar, convencionalmente, ante qualquer divindade – com a reserva dos seus pensamentos próprios.
Essa atitude estava em franco antagonismo com o estado de espírito que se ia desenvolvendo nas comunidades judaicas da Judéia do Egito e da Babilônia, em que o pensamento de um único Deus era a primeira e suprema coisa. Nem Gautama, nem Lao-Tse, nem Confúcio possuíam a menor sugestão dessa idéia de um Deus invejoso, um Deus que não toleraria “nenhum dos outros deuses”, um Deus de Terrível Verdade, que não toleraria nenhuma crença oculta em magia, feitiçaria, ou velhas práticas, nenhum sacrifício ao deus-rei, nenhuma leviandade com a severa unidade das coisas.