(palestra proferida em 28.04.06, no MASP (SP), no lançamento do livro “O Ícone, uma escola do olhar”, de Jean-Yves Leloup, editora UNESP – gravada em fita k-7, por um amigo)
Uma primeira tradição dizia que o Cristo deveria ser feio. Confirmando, tem o seu fundamento no livro do profeta Isaias quando ele fala do servidor do Messias: “o que nós vimos é sem beleza e sem brilho”. E aí a tradição diz que se o Cristo fosse muito bonito ele teria seduzido as pessoas. O fato de que ele não tivesse beleza e nem brilho, ele iria tocar uma outra dimensão do ser humano e as pessoas não o teriam seguido por sua aparência. Ao lado dessas tradições há aquela que é fundamentada nos salmos e diz que o Messias é o mais belo dos filhos dos homens, e a partir desse salmo, alguns vão dizer que Jesus era realmente o filho mais belo dos filhos dos homens.
Então nos primeiros séculos não havia representação de Jesus, e cada um, segundo sua tradição, poderia imaginá-lo. Mas os evangelhos não incluem nenhuma descrição, e para os primeiros cristãos, muito próximos do antigo testamento, havia sempre a proibição de se fazer uma representação da divindade.
Foi no século V que começou a aparecer um tecido que se acreditava que seria um retrato de Cristo – é o que vamos chamar de ‘mangdylion’; e também pode ser chamado de ‘achéiropoietes’ – o ícone que não foi feito pela mão do homem, este ícone que foi atribuído a São Lucas. E para justificar a aparição desse tecido onde estava impresso o semblante, há várias lendas. A primeira lenda é do Rei Abgar, rei de Edessa, que vivia na época de Jesus e estava leproso. Ele não poderia se misturar com os discípulos e no entanto, tinha um desejo grande de ouvir as falas de Jesus. Um dos seus servos foi convidar Jesus pra que viesse conversar com o Rei. A história nos diz que isso aconteceu pouco tempo antes da paixão, e que Jesus não pode ir até lá. Então esse servo quis fazer um retrato de Jesus, mas não conseguia. Então a história diz que Jesus pegou um tecido e fez com que seu semblante fosse impresso nele, e a partir do século XII, no Ocidente, essa história tornou-se a lenda de Santa Verônica, a mulher que no caminho da Paixão colocou seu manto sobre o semblante de Cristo.
Essa história vocês não encontram nos evangelhos, é uma tradição que apareceu mais tarde. Vocês podem perceber que o nome Verônica quer dizer ‘vera ikona’ – o verdadeiro ícone.
Na mesma época, há também a tradição do Sudário, que teria aparecido e que tem a impressão do corpo e do semblante do Cristo. Mas nessa época, esse semblante e esse corpo eram invisíveis. Foi somente no século passado que essa imagem ‘negativa’ pode revelar os seus traços, e é interessante perceber que os traços naquilo que hoje se chama o Sudário de Turim são os mesmos que aparecem nos primeiros ícones. São traços de um homem de tradição semita, e a partir desse momento, todas as imagens que representavam Cristo, como um jovem e um pastor, desapareceram.
Por que essas manifestações só apareceram a partir do século V?
Essa foi a época dos grandes Concílios Cristológicos, e é o momento em que vai ser dito que Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem – é a própria presença do Divino em nossa humanidade. É óbvio que nós não podemos representar a divindade, mas nós podemos representar a humanidade que traz a divindade.
É a partir do Concílio de Calcedônia, em 451, que os ícones vão aparecer: nós não podemos representar a divindade do Cristo, mas a sua humanidade. Aí está o surgimento do ícone. Mas essa humanidade sendo habitada por Deus, pelo Espírito, ela só pode ser simbolizada. É por isso que um ícone nunca é um retrato do Cristo, o ícone nunca pretende representar o Cristo; não é uma foto ou um quadro realista – é uma simbolização da Presença que habita essa humanidade.
Um dos primeiros ícones que vocês podem ver ainda hoje, no Monte Sinai, no Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina, um ícone muito antigo, era feito com matéria natural – têmpera – semelhante a ‘eucástica’. Se vocês observarem esse ícone, assim como outros que vieram em seguida, Cristo tem de fato um semblante que pode ser perturbador, um semblante estranho. Ele tem, ao mesmo tempo, um olho muito doce, e o outro olho, como um acento circunflexo, muito duro. É uma maneira de simbolizar que no Cristo, havia ao mesmo tempo, a justiça e a misericórdia, o rigor e a ternura, que ele era a encarnação desse amor e dessa justiça; e pra simbolizar isso, é através do movimento e da própria intensidade dos olhos. Mas não se trata de um retrato, é uma invocação da realidade que se encarnou no Cristo.
Então, no século V as pessoas se fundamentam nos evangelhos, pra criarem essas representações que são novas; em especial, o evangelho de São João, que lembra: “ninguém jamais viu Deus, mas que o Filho nos fez conhecê-Lo”. É por isso que na tradição ortodoxa nós jamais representamos Deus, nós não representamos nunca o Invisível – o Invisível que parece sempre irrepresentável. Na tradição antiga, por exemplo, a representação do Pai é considerada uma blasfêmia, porque ninguém jamais viu Deus, ninguém jamais viu o Pai, ninguém jamais viu a Fonte onde engendra a existência. Nós só conhecemos a origem da existência através da sua manifestação. Na linguagem dos evangelhos nós podemos dizer que só conhecemos o Pai através de sua manifestação, que é o Filho.
Um ícone nunca representa Deus, mas a Sua manifestação no Cristo ou nos Santos – isso tem conseqüências. Ninguém jamais viu a Vida, mas cada vivente encarnado nos faz conhecê-la. Cada vivente encarnado é um ícone da Vida invisível, uma manifestação visível do Invisível. É assim que se fala do Cristo: ele é o visível do Invisível, ele é o que podemos conhecer do que não é passível de ser conhecido; ele é o que a Vida nos faz conhecer dela mesma, permanecendo ao mesmo tempo escondida.
“Quem me viu, viu o Pai”, é uma das falas de Jesus. Quem viu o rio, de uma certa maneira, viu a Fonte. Mas a Fonte está sempre além daquilo que vemos do rio. É por isso que o Cristo reafirma: “O Pai é maior que Eu Sou”.
Aquilo que é manifesto do Pai não é a totalidade do infinito do Pai, mas é o infinito no coração dessa forma finita na qual eu encarno. E eu encarno em uma cultura, em um povo, eu tomo os limites de um ser histórico. É através do particular que o universal nos é transmitido. O ícone é uma afirmação da encarnação. Tudo que conhecemos de Deus, é através do ser humano que conhecemos. E o que conhecemos de Deus tem o limite do ser humano que manifesta isso, sejam manifestações intelectuais ou estéticas. É por isso que tudo que dizemos de Deus, todas as nossas representações, são representações relativas do Absoluto. Tudo que sabemos do Absoluto é sempre um ser relativo que nos fala e a compreensão disso pode nos libertar de todas as formas de fanatismo.
O fanatismo é uma forma de idolatria, é tomar a nossa percepção de Deus como se fosse Deus; é tomar a nossa representação de Deus como se fosse o próprio Deus, a nossa idéia de Deus como se fosse Deus. As palavras ‘idéia’ e ‘ídolo’ têm a mesma raiz. Nesse sentido, um ícone nos lembra que nossa representação do Absoluto, as nossas idéias sobre Deus, são evocações e invocações desse Absoluto. Deus é sempre mais do que podemos dizer e representar sobre ele.
O essencial em um ícone não é aquilo que vemos, mas o que não vemos. O ícone é como uma janela e o importante não é a janela em si, mas é aquilo que vemos através da janela. Trata-se de ver e de chamar o Invisível através do visível. Essa afirmação da encarnação tem conseqüências para nossa existência: a lembrança de que a matéria, o corpo, não são obstáculos à presença de Deus, mas esse corpo e essa matéria são o próprio templo da Presença. Através do ícone acontece toda a santificação da matéria à qual nós somos convidados.
Na realização dos ícones tradicionais, os diferentes reinos da matéria estão presente. Há o reino mineral, com a presença do ouro; há o reino vegetal, na madeira; há o reino animal, com a presença do ovo; a têmpera é uma pintura feita com base no ovo, da mesma maneira que o ser humano, toda a criação está presente.
O ser humano é esse local onde o universo toma consciência de si mesmo. O ícone nos diz que o ser humano é o lugar onde todo o universo reza, ou que toda criação abre-se ao seu Criador; numa linguagem mais abstrata e mais contemporânea, esse local onde o universo se abre à Presença. A humanidade pode ser idolatrada, quer dizer, fechar-se sobre si mesmo, fechar-se sobre seu conhecível, sobre seu apresentável, ou, por outro lado, tornar-se um ícone, ser uma humanidade aberta à transcendência. Em cada um de nós há uma realidade maior do que aquilo que somos, há um Eu maior que eu, há um Eu mais inteligente que eu, há um Eu mais amoroso que eu, e essa abertura a esse ’maior’ nos constitui enquanto ser humano. Fechar-se sobre si mesmo é faltar com relação à nossa humanidade.
O ícone é um elemento da matéria aberto ao invisível, é uma representação aberta à Presença, não fechada no objeto, como é o caso do ídolo.
Então, no começo dos séculos a contemplação dos ícones torna-se algo importante. No sétimo Concílio de Nicéia, em 787, lembra a importância do ícone, diante daquilo que foi chamado os iconoclastas. O iconoclasmo é uma forma de espiritualismo que não é encarnado. Através do Concílio de Nicéia através do sentido dos ícones é que nos lembra que devemos viver a espiritualidade na matéria. O infinito nós devemos viver no nosso ser finito. O interno nós devemos acolher no templo – isso é bem simbolizado pela sarça ardente: a sarça queima, mas não é consumida. A presença do divino no humano não destrói o humano, mas o ilumina a partir de dentro. Nós diríamos, na linguagem psicológica de … (aqui, não entendi o nome do moço referido), a presença do ‘self’ no ‘eu’ não destrói o ‘eu’. Não se trata de destruir o ego, ou o ‘eu’ para ir mais rapidamente em direção à espiritualidade ou ao divino, mas se trata de abrir o ‘eu’, abrir os nossos limites ao infinito que nos habita, abrir a nossa forma para aquilo que está além da forma e nos habita. O espaço no interior da jarra é o espaço que preenche todo o universo, não é preciso quebrar a jarra para saber disso, mas se trata de abri-la, de tomar consciência desse espaço infinito que nos habita.
Esses 7 primeiros concílios nos lembram dessa grandiosidade da encarnação: Deus está no homem e o homem está em Deus. Não se trata de sair da nossa humanidade para nos juntarmos a Deus, mas se trata de acolher a presença de Deus em nossa humanidade, para que essa humanidade seja transfigurada. A tradição dos 7 primeiros concílios não é a tradição da renúncia, mas uma tradição da transfiguração. Não se trata de renunciar a nada do que a vida nos deu, mas se trata de transfigurá-la, de oferecer essa matéria à luz. E essa tradição dos 7 primeiros concílios é o que nós chamamos de Igreja Ortodoxa, quer dizer, a igreja de nossas raízes. E é importante nos lembrarmos hoje, quer sejamos católicos romanos ou protestantes, nós temos um milênio de comunhão a compartilhar.
Na origem a igreja era uma comunhão de igrejas e nós temos um milênio de comunhão. É verdade que a separação da Igreja de Roma, em 1.054, das outras Igrejas Cristãs: Jerusalém, Antioquia, Constantinopla, que permaneceram ortodoxas, essa separação gerou um certo esquecimento do Ícone nas tradições ocidentais; e a partir de um certo momento essa tradição do Ícone foi perdida, mesmo se o Concílio de Trento (mais tarde) nos lembra a importância disso: das regras que todas as artes sagradas devem seguir, se essa arte não quer tomar dimensões profanas ou idólatras.
Lembro a etimologia da palavra ícone, que vem do verbo ‘eko’, que literalmente quer dizer ‘abrir um espaço ao se retirar’, se retirando diante daquilo que deve tomar o espaço. O ícone não toma o espaço ou o lugar daquele que é representado, ao contrário, ele se anula diante dele. O ícone é como em eco, e é também como o nome. Quando alguém está ausente, o fato de falar o nome dessa pessoa, traz uma certa presença do ausente. O nome é a presença daquele que não está visivelmente aqui na minha presença. Assim, o ícone é o memorial visível daquele que permanece invisível.
Então, na nossa vida cotidiana dos ortodoxos, qual é a importância dada ao ícone?
Se vocês forem hoje em dia na residência de uma família ortodoxa, quer seja na Grécia, na Síria, ou em diversos locais, vocês vão ver em cada casa aquilo que é chamado o canto da beleza. Quer seja na cozinha, na sala, e por vezes, até no quarto de dormir há um ícone, e em geral, com uma luz acesa; uma lâmpada de óleo é a lembrança de que nessa casa há abertura à transcendência – abertura à uma presença pra qual podemos nos voltar, tanto nos momentos de alegria como nos momentos de dificuldade.
O ícone é aquilo que mantém um espaço no aberto, esse local de humanidade em relação com o ser que nos faz existir. Isso, geralmente através de um ícone de Cristo ou da Teothokos da Maria. O ícone também é importante na liturgia, na celebração.
A palavra liturgia em grego quer dizer ‘obra comum’, portanto, cada celebração é a obra comum das pessoas que participam dela, e também da presença dos defuntos e dos anjos. É a obra comum do céu e da terra, mas é também a obra comum de todos os sentidos. Numa liturgia nós vamos em direção a Deus com todos os nossos sentidos – os sentidos não são um obstáculo ao conhecimento de Deus, mas são meios de conhecimento.
A importância, por exemplo, do incenso – o perfume, a importância do canto, da fala, mas também, a importância do ícone para os olhos; é através de todos os nossos sentidos que nos aproximamos do infinito real. Mas ainda é importante que os nossos sentidos não sejam detidos por aquilo que eles sentem, vêem, ouvem, então, a importância do ícone, do incenso, dos cantos é abrir os nossos sentidos para a transcendência. O ícone está presente na casa, na liturgia, e nas festas que fazemos através das igrejas, e nós veneramos o ícone no centro da igreja porque ele é a lembrança daquele acontecimento maior.
Mas o ícone também está presente na terapia. Eu lembro-me de uma exposição de ícones da Etioquia, em Paris, e diante de alguns ícones estava escrito: “atenção, isto é uma medicação”. Aí há algo de interessante porque, colocar-se diante de um ícone é colocar-se diante de um outro olhar – há o olhar do médico, o olhar do juiz, do amigo – mas se trata algumas vezes de colocar sobre as nossas doenças e os nossos sintomas, o olhar do anjo, ou o olhar do Cristo, o olhar de Maria, e aí neste olhar nós vemos as nossas doenças e os nossos sintomas de uma outra maneira, então, há uma eficácia terapêutica.
O papel de um terapeuta é ajudar alguém a olhar de uma outra maneira aquilo que acontece com a pessoa – quer seja um acidente, um trauma, e ver as coisas de um outro ponto de vista, que permite não nos fecharmos num determinado ponto de vista. Há uma outra maneira de ver aquilo que nos acontece que nos permite não nos identificarmos com os nossos sintomas. Diante de um ícone eu não sou um câncer ou uma doença do quarto 27, mas eu sou alguém que tem uma doença, e que talvez possa fazer algo com essa doença, fazer dela uma condição de evolução e de consciência, se não nos fecharmos no sofrimento.
Por vezes isso é difícil, é verdade. Mas existe ainda um olhar que não me identifica com a soma dos meus sintomas, e por vezes, nesse olhar eu encontro a minha liberdade. A nossa vida vale pelo olhar sobre o qual ela se coloca: há olhares que grudam na nossa pele, há o olhar da culpa, mas há também olhares que podem nos libertar. Eu acredito que todos nós buscamos esses olhares que invocávamos há pouco, onde há ao mesmo tempo a ternura e a verdade, porque nós todos buscamos a verdade, mas é preciso que essa verdade seja suportável e a verdade sem a ternura é um pouco uma inquisição. Mas a ternura sem a verdade – por vezes os olhares que nos elogiam, que dizem nos amar, não são suficiente – a nossa vida vale pelo olhar sobre o qual nos colocamos.
O ícone nos lembra que há um outro olhar diferente daquele da nossa esposa, do nosso marido, diferente daquele dos nossos pais, diferente dos políticos ou dos padres das diferentes religiões, há um olhar diante do qual eu posso ser aquilo que sou e não me desesperar com os meus limites. Talvez seja esse olhar que tenha tocado o coração de Pedro após a traição, e foi o que permitiu a ele não se fechar na sua culpa. Esse outro olhar que nós sentimos ser colocado sobre nós, podemos também colocá-lo sobre os outros. E nesse momento cada semblante humano se torna uma imagem visível do invisível.
A Madre Teresa de Calcutá dizia que as pessoas que estavam morrendo, que ela acompanhava na rua, eram realmente para ela o ícone de Cristo. “Tudo que você faz de melhor, é a mim que você faz”. Tudo que fazemos ao ser humano é a vida que estamos fazendo, é ao Ser que faz ser toda a vida que estamos fazendo isso, e para acessar a perfeição eu acredito que o sentido do ícone pode nos ajudar.
Tem ainda muito a ser colocado sobre a diferença entre o ícone e o ídolo. Nós compreendemos nesse momento que o ícone é como uma arte de viver; não somente uma arte de ver, mas uma arte de conhecer e de amar.
E o que é idolatria?
É ter o olhar retido pelo que a gente vê. O ídolo preenche os nossos olhos, o visível obstrui os nossos olhos de uma certa maneira que nós não vemos nada além daquilo para o qual estamos olhando.
O que é a iconografia?
É ter o olhar não preenchido por aquilo que vemos. Eu vejo algo e a partir dele eu vejo também o invisível que está em torno de tudo aquilo que é visível.
Isso também nós podemos encontrar no campo da ciência.
(nesse trecho, Leloup fala sobre a inteligência, o conhecimento, a diferença entre científico e cientificismo, porém ha forte interferência de ruídos na gravação e só consegui captar alguns fragmentos):
… idolatria é ter a inteligência retida por aquilo que conhecemos… o que eu sei é finito, mas o que não sei é infinito… os grandes cientistas são em geral, pessoas muito humildes… o meu conhecimento é um ponto de partida na direção do desconhecido… em alguns meios há toda uma prática que nós podemos chamar de ‘ethiquetà’…
(corte da gravação ao trocar o lado da fita)
… o que eu posso compreender dele. E isso nós encontramos também na vida cotidiana, nas nossas relações.
Como não ter o coração detido por aquilo que amamos?
Aquilo que eu gosto no outro não é o outro. O outro é sempre mais do que aquilo que eu conheço dele, é sempre mais do que o que posso amar nele. Isso pode nos permitir não fazermos do outro um ídolo, porque se dizemos a alguém: “você é tudo para mim”, tudo é demasiado para a pessoa suportar. Se eu disser ao meu filho que ele é tudo para mim, isso pode ser pesado demais para ele, ele corre o risco de se sentir responsável pela minha felicidade.
Eu não sou tudo para o outro. O outro não é tudo para mim. Mas é através do outro que eu posso descobrir o Todo. É através desse semblante único, particular, do meu bem amado, ou da minha bem amada, que eu posso amar a humanidade.
Como não se fechar no particular e não se dissolver no universal?
Às vezes alguma pessoa diz: “ah, eu amo todo mundo”, mas entre parênteses, é necessário ouvirmos: “eu não amo ninguém”, eu não amo ninguém em particular. Alguns dizem: “ah, eu amo só essa pessoa”.
Como manter o particular e o universal?
Quando lemos o evangelho, é muito bonito ver a relação de Jesus com os seus discípulos, ele tem preferências, e isso é sinal de que o seu amor é verdadeiramente humano. O amor humano é feito de preferências, mas essas preferências não nos impedem de amar os outros, nós não nos fechamos em nossas preferências.
Como ter a inteligência não detida por aquilo que conhecemos, o olhar não detido por aquilo que vemos, o coração não detido por aquilo que amamos?
É preciso dizer ainda, como ter uma fé não detida pelas nossas crenças, porque as nossas crenças, as nossas representações de Deus também podem tornar-se idolatria. Como eu dizia há pouco, certas idéias, certas afirmações sobre Deus podem ser obstáculos a uma verdadeira experiência, ao verdadeiro conhecimento de Deus. Nós todos temos no nosso consciente e em nosso inconsciente, imagens que fazem obstáculos ao invisível, e mesmo do Cristo, nós podemos fazer um ídolo. Há uma fala do evangelho que diz: “aquele que crê em mim, não é em mim que ele crê, mas naquele que me enviou”. Jesus se apresenta como um ícone, como uma janela aberta ao invisível, como o caminho que nos conduz em direção à fonte, em direção ao Pai. Ele é o caminho e esse caminho toca o objetivo; trata-se também de percorrer esse caminho.
Como uma fé que é icônica? Quer dizer, que não se detém nas palavras, nos enunciados dogmáticos, mas que os atravessa, que faz uso das palavras para ir além daquilo que está nas palavras, que faz uso do visível para ir ao invisível? E aí também nós poderíamos falar por um longo tempo.
Nessa noite, antes de nos separarmos, talvez seja importante nos deixarmos olhar pelos ícones. Como dizia há pouco, um ícone não é um objeto de arte, um objeto estético que a gente observa – é uma presença que nos olha, e trata-se de aceitar ser visto. É por isso que o ícone, antes de mais nada, é um instrumento de contemplação. Contemplação não é somente olhar numa direção ou além, mas é sentir esse além do qual nós não podemos falar, que está além das palavras e dos conceitos, se deixar juntar-se a essa presença. Talvez nós pudéssemos olhar alguns ícones e nos deixar olhar por eles.
Algumas pessoas se surpreendem com o fato de que os ícones não exprimem emoções, não há sorriso e nem lágrimas. A função do ícone é exatamente nos conduzir além do mundo emocional, além do mundo psíquico no qual nos encontramos. A maioria das imagens que conhecemos excitam o nosso psiquismo, em vez de apaziguá-lo; a maioria das imagens buscam despertar uma emoção positiva ou negativa. O ícone nos quer fazer passar além desse mundo psíquico, pra entrar nesse mundo do silêncio ou da calma mental, o que na tradição ortodoxa nós chamamos de ‘hesychia’, que é a paz interior, o silêncio do coração. Vocês percebem que se nós entrarmos no clima desse ícone, nós somos convidados a ir ao interior. Este olhar não é detido por aquilo que nós somos, ele olha para uma dimensão de nós mesmos que algumas vezes é desconhecidas por nós próprios, algo além das palavras e das emoções. É uma maneira de entrar em contato com o nosso ser essencial – o Eu Sou que É.
Nós não vamos entrar no detalhe do simbolismo das cores e das formas, mas cada um deve descobrir toda essa sabedoria simbólica. Mais profundo que podemos saber desse simbolismos das linhas e das formas, é essa qualidade de atenção e contemplação que deveria vir em primeiro lugar, porque é isso que nos faz sensível à presença. (pausa para a contemplação de um Ícone do Cristo)
Vocês podem perceber que esse semblante não é realista, isso não é um retrato que um artista poderia imaginar pra representar o Cristo. Esse semblante se encontra no interior de três círculos, vocês podem perceber também que os olhos são diferentes: o olhar num dos olhos é mais terno e o outro parece mais exigente. Vocês podem perceber que há uma arte abstrata, mas ao mesmo tempo há uma dimensão do realismo. Não é uma representação, mas uma evocação dessa presença que se encarna no semblante humano do Cristo, e também a invocação dessa presença que se encarna em cada semblante humano, e que está além das diferentes formas que pode tomar o nosso semblante.
No nível da boca não há expressão. Há também diferentes simbolismos com relação aos cabelos, e esse simbolismo nós vamos encontrar também em alguns gestos. O ícone não é somente um semblante, é todo o corpo que se expressa, todo o corpo é um local de manifestação do logos,e esse gesto, que é um gesto de bênção, que é o gesto do padre quando ele abençoa na liturgia, é também uma fala: os dois dedos simbolizam a união da humanidade e da divindade, e os três dedos unidos simbolizam a uni-trindade. Alguns dirão que nessa mão há toda a fé cristã, o ser humano é chamado à união com o divino e esse divino, a essência do ser, é trindade. E quando dizemos que Deus é trindade, dizemos que Deus é relação, que Deus é amor, e que é através da relação das pessoas que o amor pode encarnar.
Também ao olharmos o ícone e sentir essa mão voltada para nós, podemos receber a sua bênção e por vezes também acolher a cura, porque essa mão nos lembra a que profundidade de humanidade nós somos chamados, nós não nascemos unicamente para ter sucesso e morrer. Nós nascemos para tomar consciência daquilo que não morre em nós, nós somos chamados a descobrir em nossa vida finita, a vida eterna, a própria presença do vivente, e esse gesto nos chama a entrar na palma de nossa mão, e, principalmente, na palma do nosso coração e descobrir que a vida habita aí – aí já não é mais o ícone que vemos.
Nós devíamos ter visto antes, o ícone da ressurreição, mas é importante sentir a diferença entre a arte ocidental tardia, após o primeiro milênio, e ver que mensagem transmite a imagem. Do ponto de vista teológico algumas imagens podem nos conduzir a impasses. Nós poderíamos achar muito bonito esse Cristo ressuscitado de … (novamente, não entendi o nome desse outro moço), porém, na tradição ortodoxa nós vamos dizer que isso não é o Cristo ressuscitado, mas o Cristo reanimado. Nós temos tendência a confundir ressurreição, com reanimação de um corpo. O Cristo não é reanimado, como Lázaro que sai do túmulo pra voltar pra ele depois. Cristo ressuscitou e a ressurreição é a passagem para um outro plano, alguns dirão que é um corpo que passa da velocidade da matéria para a velocidade da luz. São físicos contemporâneos que falam dessa maneira da ressurreição, dizendo, por exemplo, que o Sudário de Turim não é o testemunho de um corpo que se rompe e sai do seu casulo, de um corpo que se reanima, e é por isso que na tradição ortodoxa nós nunca representamos o Cristo saindo do túmulo, porque isso não está nos evangelhos. E não houve nenhuma testemunha dessa saída do túmulo, há somente testemunhas de uma presença que se manifesta no nosso espaço-tempo, àqueles que acreditam nele.
O ícone da ressurreição da tradição ortodoxa é o túmulo vazio, e nós vamos encontrá-lo em outro episódio que trata da ressurreição. Vocês estão vendo, o túmulo está vazio e o sudário está enrolado, e essa é a descrição do evangelho de S. João – e aí está o ícone do momento da ressurreição.
Na tradição ortodoxa se insiste muito na tradição do sábado sagrado, e na tradição ocidental se passa às vezes com muita rapidez da sexta-feira santa ao domingo de páscoa, esquecendo esse dia do vazio, esta experiência da vacuidade. E do ponto de vista iniciático é importante levar em consideração esse grande sábado, que está além do sofrimento, além da paixão: a experiência do nada.
E é desse nada, dessa vacuidade, desse vazio do túmulo que a nova vida poderá jorrar, que a vida eterna vai poder se revelar; e aí essa vida vai poder se manifestar naquilo que chamamos de mundo intermediário.
Eu não sei se vocês conhecem o evangelho atribuído a Míriam de Magdala, ele é muito interessante para compreender esse ícone, e também para nos aproximar do sentido profundo da ressurreição, porque Míriam coloca uma questão. Ela pergunta ao Cristo ressuscitado: “como é possível te ver? Isso é uma experiência psíquica ou espiritual?” Ou a gente poderia dizer de outra maneira: seria uma projeção? É um luto que não foi aceito e eu produzo uma imagem dessa pessoa que acabei de perder? Será que estou tendo uma alucinação como pode ocorrer após a partida de uma pessoa que amamos? A sua presença se manifesta de diversas maneiras – seria isso uma experiência psíquica? Ou então, será que eu me tornei mística? E essa é uma visão espiritual?
E o Cristo, no evangelho de Maria, responde: “não é nem psíquica, nem espiritual, você não é louca, nem é uma mística”.
A visão do Cristo ressuscitado é possível pelo ‘nous’. O que é o ‘nous’? É esse estado de consciência que nós podemos experimentar quando o psiquismo está apaziguado e quando o mental está silencioso. O corpo ressuscitado se revela à essa dimensão contemplativa do ser que nós chamamos também de fé. É por isso que todas as aparições do ressuscitado tocam o coração daqueles que acreditam nele. É preciso uma abertura no ser humano para entrar em contato com esse mundo intermediário. O Cristo ressuscitado não é como antes de sua morte, o corpo ressuscitado não é um corpo comum. Tenta passar com seu corpo através dessa parede – você pode se machucar. O corpo tem outra densidade e ao mesmo tempo ele não é totalmente invisível; ele pertence a esse mundo, através de sua visibilidade, mas ele também já está no mundo do Pai, do invisível, através de sua faculdade de tornar-se invisível e visível.
É interessante ver em outras tradições não cristãs, em que se fala do mundo imaginal; os profetas e os místicos conhecem esse mundo onde a Presença se torna visível sem se fechar no visível.
O ícone nos mostra Jesus e Maria Madalena com essa fala de Cristo: “não me detenhas.”. Alguns traduzem: “não me toques”. Mas se tomarmos o texto grego, a tradução é “não me traga de volta ao conhecido”, “não me traga aquilo que você conhece de mim, eu subo em direção ao Pai”. Essa é uma maneira de dizer que a relação com o Cristo ressuscitado é uma relação que tem uma qualidade diferente daquela que Míriam podia ter antes. Ela é chamada a passar de uma relação carnal, psíquica, para uma relação espiritual. Aliás, o que nós encontramos na liturgia do dia da páscoa: “aquele que você busca no exterior está no seu interior, e é no seu interior que você precisa descobrir sua presença ressuscitada, a presença do amor mais forte que a morte”.
E para terminar, nós podemos fazer um momento de silêncio, porque talvez tenhamos questões e se trata de colocá-las à essa Presença que está em nosso interior. Um pequeno momento de contemplação, colocando a calma no pensamento, no psiquismo, e assim nesse momento, é o nosso próprio corpo, é o nosso próprio coração que é o ícone. Através do que somos hoje, nesse instante, podemos nos unir a essa Presença, simplesmente estar assim, respirar suavemente, acolher como em um templo a presença do Espírito, a presença do invisível. Respirar nessa Presença, para o nosso bem estar e o bem estar de todos. Que Sua bênção venha sobre nós e sobre toda a criação. (instantes de silêncio)
A nossa meditação continua, uma vez que nós continuamos a respirar, mas talvez, em outros locais, em outras posturas. Trata-se de acolher essa Presença que nos acompanha e que nos guia. Eu desejo a vocês um bom caminho, uma boa noite, agradecendo a esses momentos de silêncio que compartilhamos.