O Pecado, o Céu e o Inferno

“Ó Deus, perdoa três pecados que se devem às minhas limitações humanas:

 Tu estás em toda parte, mas eu Te adoro aqui neste templo;

Tu não tens forma, mas eu Te adoro nestas formas;

Tu não precisas de louvor, mas eu Te ofereço [minhas] preces

e louvores. Senhor, perdoa [esses] três pecados que se devem

às minhas limitações humanas”.

 

 

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A palavra pecado, em grego hamartia, quer dizer “errar o alvo”, visar algo e não atingi-lo. Seria a transgressão voluntária de uma norma religiosa ou moral. Para os Terapeutas de Alexandria, o pecado seria uma doença do desejo, uma desorientação ou perversão daquilo que realmente se deve desejar. O sentimento de culpa provocado por esse tipo de transgressão é comum a muitas culturas e religiões. Os povos primitivos consideravam pecado, qualquer ação capaz de provocar ruptura da ordem natural e social, que devia ser então restaurada (vide adiante em “O Verdadeiro Rumo do Cristianismo”). Os gregos associavam a noção correspondente de pecado às atitudes, geralmente atribuídas à ignorância, que tornavam a pessoa incapaz de alcançar a expressão de si mesma e sua adequada relação com o Universo. Para as religiões que postulam um mundo espiritual, o pecado seria uma ofensa à divindade e para o tantrismo hindu, pecado é não ser quem realmente somos, em nossas emoções, sentimentos e ações.

 No Antigo Testamento e na moral judaica antiga, o pecado se opõe à fé e constitui uma violação deliberada daquilo que foi ditado pela Vontade Divina. É atribuível às faltas ou defeitos humanos, como a soberba, o egoísmo e a desobediência. O cristianismo, seguindo as diretrizes judaicas, acentuou a gravidade do pecado, tanto em sua essência quanto em suas conseqüências. O apóstolo Paulo desenvolveu a idéia da relação entre o pecado e a graça ou perdão. Segundo ele, o ser humano se encontra submetido ao pecado desde a origem (pecado original), e apenas Jesus Cristo pode salvá-lo dessa escravidão.

Apesar de afirmar que o ser humano já nasce em pecado por pertencer a uma espécie pecadora, conforme a imagem bíblica do pecado original de Adão e Eva no Paraíso, o cristianismo rejeita a doutrina maniqueísta segundo a qual o mundo é inerentemente mau, e sustenta que a transgressão da lei moral é conseqüência do uso indevido do livre-arbítrio. O homem teria uma tendência inata ao pecado e o resultado dos seus pecados teria repercussões não apenas sobre ele, mas também sobre a sua descendência. Nos primeiros séculos do cristianismo, a concepção dualista da natureza humana, herdada do pensamento grego, tendeu a considerar a carne (isto é, o corpo sensível, por oposição ao espírito) como receptáculo do mal (vide adiante em “Religiões Gregas”). Mesmo como sede de paixões, impulsos e apetites, o corpo não se identificava com a maldade da natureza humana, pois poderia e deveria ser santificado por meio da virtude e do ascetismo.

O medo da morte, lugar desconhecido e sombrio, levou à busca da imortalidade. Na impossibilidade da imortalidade material, a busca da imortalidade da alma é o legado que nos chegou através dos tempos. Os assírios e babilônios acreditavam numa vida após a morte, ou no abismo do Apsu, com água fresca, ou na Terra sem retorno, de eterna escuridão onde as almas dos mortos (edimmu) são todas misturadas. Igualmente os egípcios e os chineses criam numa alma imortal. Esses acreditavam nos ancestrais como espíritos vivos e poderosos, preocupados com o bem-estar de seus descendentes. Os astecas, os incas e os maias criam também numa alma imortal. Os últimos contavam com 13 “céus” e nove “infernos”.

O filósofo grego Plutarco (46-124), em sua obra traduzida para o inglês e intitulada “On the Face in the Orb of the Moon” fala de duas mortes. Na primeira haveria a morte do corpo material, “fazendo do homem dois de três” (Cf. em “A Natureza Humana“), habitando o homem nos “Prados de Hades”, mundo da deusa Ceres situado entre a Terra e a Lua. A segunda morte, que ocorria nos domínios de Perséfone (ou Prosérpina), representando ela o karma acumulado após a morte, faria do homem “um de dois”, alcançando finalmente o homem um estado de bem-aventurança nos “Campos Elísios”, situado na Lua (Cf. em “A Consciência na Morte“). Nos “Prados de Hades”, aqueles que foram injustos sofreriam a punição de seus pecados até a sua desintegração no Tártaro, mas os bons e virtuosos permaneceriam ai o tempo mínimo necessário para se purificarem e purgarem por expiação todas as impurezas que tenham contraído, após o que iriam aos “Campos Elísios” onde permaneceriam na bem-aventurança por um período de tempo pré-fixado e específico, para então retornarem à vida material.

Os hindus têm uma visão semelhante, chamando de Kama-loka aos “Prados de Hades” e de Devachan (terra dos deuses) aos “Campos Elísios”. Similarmente, os egípcios chamam de Amenti ao local da primeira morte. Os católicos ensinam, a existência de um purgatório, local para onde vão os homens que apresentam falhas e defeitos que o incapacitam a subir aos céus, correspondendo ao Tártaro grego. Já o Zohar judeu (II, 97a) chama aos “Campos Elísios” dos gregos de Ahaba Hechal, “o Palácio do Amor”, a mitologia escandinava de Valhalla, os budistas de Nirvana e os cristãos de paraíso, enquanto os muçulmanos não acreditam em apenas um, mas em sete níveis de paraísos e sete terras (Alcorão 65:12).

A Bíblia Sagrada, quando se refere ao Reino de Deus, diversas vezes cita a palavra “céus”, o Reino dos Céus, e que o Filho está sentado à direita do Pai no mais alto dos céus (Hb 1:3). Da mesma forma, alguns apócrifos como o Livro dos Segredos de Enoch e o Livro da Ascensão de Isaías citam a existência de sete céus. No primeiro céu existiriam anciãos, dirigentes das ordens estelares e anjos dirigentes de estrelas. No segundo céu anjos escuros que teriam sido infiéis a Deus. No terceiro céu haveria um lugar reservado para os justos e outro para os que desonraram a Deus. No quarto céu estaria o curso do Sol, da Lua e dos elementos do Sol. No quinto céu estariam aprisionados Satanás com seus soldados, os Grigori. No sexto habitariam os sete grupos de anjos conhecidos como arcanjos. No sétimo grandes arcanjos, dominações, querubins, serafins e tronos não se afastam da face do Senhor, servindo-O e louvando-O. Nesse último céu haveria três planos, conhecidos como Muzaloth (oitavo céu), Kuchavim (nono céu) e Aravoth (décimo céu) onde reside o Todo Poderoso que não tem nome, o Bem-amado cujo nome é um mistério que todos os céus não poderiam penetrar.

No livro dos Segredos de Enoch, a hierarquia das trevas, daqueles que rejeitaram o Senhor da Luz, tem um príncipe, Satanás, aprisionado no quinto céu com seus soldados, os Grigori, uma legião de anjos negros, aprisionados no segundo céu, e três que fugiram para a Terra, tomando as filhas dos homens como esposas, sujando o mundo com suas obras, nascendo deles gigantes (os Gigantes e Loki da mitologia escandinava). Foram condenados a ficar abaixo da terra até o céu e a Terra acabarem.

Os muçulmanos crêem que a alma dos falecidos vai para o Barzakh (Barreira – Alcorão 23:100), onde conscientes sofrem a “punição do túmulo” se tiverem sido más, ou do contrário desfrutam a felicidade. Aí permanecem até o dia do juízo, quando os pecadores sofrerão um castigo mais severo na Geena (Alcorão 13:34 – o Hel escandinavo) ou ressuscitarão (Alcorão 75:1,3,6,40) para viverem no Paraíso (Alcorão 36:55-58). Ambos esses destinos perdurarão enquanto perdurarem os céus e a Terra (Alcorão 11:107-108).

O destino final do homem é fruto de suas próprias escolhas. Seu livre-arbítrio o leva a escolher entre o bem e o mal. Mas qual a origem do mal no Universo. Filosoficamente, pode-se pensar que se Deus não o criou, no mínimo permitiu que tivesse vindo à existência. Enquanto alguns defendem que o homem é a origem do mal, pelo uso de sua livre escolha ou pela ilusão gerada em sua mente inquieta, muitas religiões afirmam que seres espirituais é que foram os originadores do mal. Por outro lado, se a ausência de luz é chamada trevas e a diferença entre o amor e o ódio é apenas uma questão de gradação, pode-se crer que se existe o bem, é imperativa a existência do mal. Talvez a origem do pensamento reflexivo tenha criado o “Gênio Contrário”.

 

“Não há nada bom nem mau; o pensamento é que o faz assim”.

Shakespeare (1.564-1.616), em Hamlet.

 

“Dizemos que dois gêmeos imaginários moram na mente, duas mentalidades, vão do melhor ao pior em pensamentos, palavras e ações. É bom escolher corretamente entre esses. Da dinâmica dessas duas mentalidades nascem a vida e a não-vida, e assim há de continuar sendo”.

Tradução do terceiro gatha no Zend-Avesta

 

A primeira menção à origem do mal foi feita por Zoroastro (628-521 a.C.), quando descreveu a rebelião de Ahrimán. No Ramayana, Ravana personifica essa força, que entra em guerra com o bem na grande batalha entre os filhos do Sol e os filhos da Lua do Mahabharata, pela supremacia das forças divinas sobre as forças inferiores. Da mesma forma a Bíblia Sagrada cita uma rebelião de anjos, chefiada por Lúcifer (Cf. em CRISTIANISMO) e o Corão relata a recusa de Iblis em prostrar-se diante da nova criação de Alá, o homem: “Sou melhor do que ele. Criaste-me de fogo e criaste-o de barro” (Alcorão 38:76). A árvore da vida da Cabala judaica representa o Gênio contrário como o décimo Sephiroth, Malkuth, a última emanação da Luz Ilimitada (Cf. em JUDAÍSMO). Legiões de seres intermediários entre os deuses e os homens se encontram em todas as tradições: os íncubos e súcubos católicos, os dibuks dos rabinos, os bhuts hindus, os vajras budistas, os sátiros gregos, os djins do Corão, os dusii celtas, etc.. (vide adiante)

A busca do caminho do meio dos budistas e do equilíbrio entre o Yin e Yang do taoísmo, faz pressupor a coexistência desses dois princípios. De qualquer forma, parece que as existências do mal, da infelicidade e do sofrimento são necessárias à evolução humana, desde que o homem não procure por “porquês”, mas sim se indague “para que”? O Corão deixa a mensagem da permissão divina à existência do mal (Alcorão 6:112):

 

“… dirá o demônio: … Eu prometi, depois falhei. Pois eu não possuía autoridade sobre vós: só que vos chamei e vós me atendestes. Não me censureis: censurai antes a vós mesmos. Não vos posso socorrer nem vós me podeis socorrer. Nunca partilhei vossa crença de que eu era um associado de Deus” .

Alcorão 14:22

 

“Que o próprio Senhor te repreenda!”.

Bíblia Sagrada – Jd 9

 

  “Num trono de ferro enferrujado, além da mais remota estrela do espaço, eu vi Satã sentado, sozinho. Velho e encovado era o seu rosto, porque seu trabalho fora feito, e ele descansava na eternidade. E até ele, do Sol vieram seu pai e amigo dizendo ‘agora que a obra está feita, o antagonismo terminou’. E guiou Satã para o paraíso que Ele conhecia. Gabriel sem carranca; Uriel sem lança; Rafael desceu cantando, dando boas-vindas ao seu antigo par. E sentaram ao lado Dele, Aquele que havia sido crucificado”.

James Stephens, poeta irlandês.

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