Yamas

Aparigraha

“Devemos receber apenas o que merecemos; se tomarmos mais, estaremos explorando alguém”  1:156.

T. K. V. Desikachar

Parigraha significa ‘pegar’, ‘agarrar’ ou apossar-se’ e aparigraha (‘tire as mãos’ ou ‘não se aproveite da oportunidade’), traduzido comumente como ausência de cobiça (raiz de todos os males), que denota um sentimento de inveja e ciúme, vai além disso, incluindo a ausência do desejo por posses e seu acúmulo, fonte da ambição, da avareza e da mesquinharia. Sendo fonte de insatisfações (kle?as), como foi visto anteriormente, por que, então, cultuar um desejo de posse (pelo ‘meu’), seja material ou psicológico, e, sobretudo, porque me apegar a essa posse?

Num mundo em que a impermanência impera, onde a moderna ciência quântica afirma que toda a manifestação é composta de vazio, onde tudo que nasce ou surge um dia inevitavelmente irá morrer ou sumir, por que desenvolver algo como a cobiça. Cobiça e inveja andam sempre juntas e dão origem ao apego às coisas cobiçadas e invejadas que são por fim conquistadas. Mas será que alguém é capaz de realmente possuir algo? Será que existe algo real que possa ser possuído?

Deixando um pouco de lado essa questão do que seja real ou ilusório, já exposta, na verdade, criar apego a qualquer objeto material, emoção ou pensamento (crença ou fé), nos levará a não viver mais no tempo presente e nos levará à ilusão de um futuro provável ou a um passado que não retorna mais. O medo de perder os objetos de apego, ou a raiva (ou tristeza) por tê-los perdidos, são causas de sofrimento. Assim, sempre que houver tristeza ou sofrimento haverá alguma forma de apego associado.

Almejar aparigraha começa por desenvolver o discernimento da inexistência do ‘eu’ e do ‘meu’, como usualmente os concebemos, e contemplar a absoluta relatividade desses conceitos. Falar de aparigraha também é falar de vair?gya (desapego) uma das chaves para se extinguir os kle?as. Mas não ser apegado aos seus bens e, ainda menos, aos dos demais não quer dizer que tenho que me desfazer de todos os meus bens e sair agora como um sa?ny?si (renunciante) pelo mundo. A noção primeira de aparigraha é deixar o apego à posse dar lugar a uma posse desapegada.

Ter e receber somente o justo e estritamente necessário, mas sem nenhum apego a eles é o desafio desse conceito 1:156. Mas o verdadeiro desapego é aquele que renuncia à posse dos entes queridos, tais como familiares, amigos e, principalmente, cônjuges. Normalmente nós nos apoderamos deles e os transformamos em objetos de apego. Não são mais seres humanos, mas coisas que possuímos e que temos controle. E por fim, o mais sutil nível de cobiça é o desejo por conhecimento, por virtudes (inclusive aparigraha) ou por conquistas espirituais (siddhis).

Procuramos por conhecimentos e achamos que somos donos desse conhecimento adquirido, não o querendo repartir com ninguém. E mais ainda, achamos que o nosso ponto de vista, adquirido através de nossos ‘pré-conceitos’ que construímos através de toda uma vida, ou vidas, é a visão correta de mundo. E quanto mais avançamos no caminho do conhecimento, mais arrogantes nos tornamos, nos aventurando como ‘donos da verdade’. Conhecimento é poder e temos uma enorme cobiça, deturpada, por poder.

Com o discernimento, paulatinamente, passamos do estado de ter posses para ‘estar em posse de’, mas uma nova tendência não desejável surge: a displicência. A observância de aparigraha não deve induzir à displicência para com os objetos confiados à nossa guarda, nem à falta de zelo para com as pessoas de nosso convívio, de quem somos responsáveis pela instrução, ou que queremos bem.

E então uma nova e mais sutil tendência do ego pode se instalar: o controle do outro pelo conhecimento. E passamos à intromissão, uma forma muito mais sutil de posse e apego, onde ditamos ao outro o que ele deve ou não deve fazer. Será que o parece bom para mim necessariamente deverá ser bom para o outro. Assumimos nossa experiência particular, fragmento da Verdade, como absoluta e a impomos àqueles a quem amamos ou convivemos.

Tomar uma aspirina pode ser bom para mim e a morte para o outro. Recomendar uma ação a ser feita pelo outro pode levá-lo ao erro. Estaremos prontos para arcar com as conseqüências, como co-responsáveis pelos erros cometidos por nossos aconselhados, quando eles cometerem deslizes trilhando o caminho que nós mesmos apontamos como sendo o correto? Será que mostrando o que fazer a alguém não estarei despertando tendências subconscientes (sa?sk?ras) que ele não estava preparado ainda para enfrentar, levando para situações ainda piores? Ou será que temos que reprimir severamente todo e qualquer desejo de intromissão em assuntos alheios?

Serei eu o ‘dono da verdade’ com direito à intromissão ou conselho se dá somente a quem o pede? Será que uma pessoa centrada em si mesma, fechada em suas próprias crenças estará aberta ao novo? Com certeza não, e se eu me arvorar como dono da verdade e dono dessa pessoa, não serei muito diferente de qualquer fundamentalista religioso ou científico, fechado em mim mesmo e impondo a minha verdade.

Não interferir traz em si uma nova e mais cruel armadilha: a da indiferença que leva à falta de compaixão e amor para com o outro. Não devemos nunca deixar de nos indignar perante as injustiças. Interferir quando se tratar de seres indefesos, estar ativo no bem e pronto para auxiliar quando as oportunidades surgirem deveria ser uma meta de vida. Mas amar incondicionalmente e ter compaixão implicam na capacidade de não-julgar.

Aqui está o segredo da ação desinteressada: andar sempre com uma lanterna e um tubo de cola… A lanterna para iluminar os possíveis caminhos por onde alguém possa e decida trilhar, e a cola para que ela própria ‘cole seus pedaços’, se porventura for um mau caminho. Mas a decisão de qual caminho trilhar deverá ser sempre do outro. Esses questionamentos acerca da intromissão nos levam ao conceito hindu de karma. Se decidir pelo outro estarei construindo um elo de causa e feito com tudo o que advir daí em diante. Então, talvez, o sensato seria estar atento às palavras do Mah?tma Koot’ Hoomi Lal Singh 3:62:

“deixa que cada um execute seu próprio trabalho a seu modo; estejas pronto a oferecer auxílio aonde ele for necessário, mas nunca te intrometas”.

O êxito em aparigraha é totalmente dependente da auto-investigação dos motivos da cobiça que nos levam à busca do ‘ter’. Quanto mais êxito o buscador obtiver, na prática de aparigraha, mais sua mente fica livre do desejo e da obrigação de ter e mais lúcida e tranqüila ela se torna a ponto de poder perceber diretamente todas as relações de causa e efeito da vida, pelo simples fato de não se estar mais sob influência da personalidade YS II:39. Ou seja, torna-se capaz de acessar memórias cada vez mais profundas e assim conhecer o próprio presente, passado e futuro, ou de outrem.

 

BIBLIOGRAFIA

  • As referências bibliográficas acham-se assim indicadas: xx:yy, onde ‘xx’ é o número da referência contido na BIBLIOGRAFIA (no final do livro) e ‘yy’ é a página onde se encontra.

  • Quando precedendo ‘xx’ estiver escrito YS, a obra referenciada é o Yoga S?tra de Pat?ñjal?, BG quando for Bhagavad G?t?, VC quando for o Viveka Ch?d?mani, TB quando for o Tattvabodha? e SS quando a obra referenciada for o ?iva S?tra (obra de referência no ?ivaísmo de Cachemira). Nesses casos ‘xx’ é o capítulo e ‘yy’ é o s?tra.

  1. Desikachar, T. K. V.; o Coração do Yoga, Editora Jaboticaba, São Paulo, 2007.

  2. Iyengar, B.K.S.; Luz sobre el Yoga Sutra de Patañjali, 1ª Edição, Editorial Kairós, 2.003, Barcelona;

  3. Krishnamurti, Jiddu; Aos Pés do Mestre, 36a Edição, Editora Teosófica, Brasília, 1.999;

 

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