A Queda dos Ideais

(Lúcifer,Vol. V, Número: 28, dezembro,1889, pg.261-274)

Ave! Nós sabemos que ideais nunca podem ser, inteiramente corporificados na prática. Os ideais deverão permanecer distantes – e devemos nos contentar com qualquer aproximação a eles não intolerante! . . . E mais, é para não nos esquecermos de que ideais de fato existem; se não puderem ser aproximados como um todo, o assunto se esvai! Infalivelmente. CARLYLE

            A aproximação do Ano Novo da cristandade, e a chegada de outro aniversário da S.T. no qual completará quinze anos, · nos concede a melhor oportunidade de olharmos para trás e vermos o quanto que os ideais públicos e privados, ganharam ou perderam de terreno, e o quanto se modificaram para melhor ou pior. Isto demonstrará, e ao mesmo tempo, verificará se o advento da S.T. realizou-se a tempo, e o quanto é verdade que tal Sociedade foi uma necessidade imperiosa em nossa era.

            Limitado pela exclusão da política de seu campo de observação, o único horizonte que o Lúcifer tem para observar e passar seu julgamento é aquele que tangencia a realidade da moral e do ser espiritual do homem. Que mudanças então aconteceram durante o ano findo, no homem mortal e imortal? Mas aqui de novo a esfera de nossa observação encontra-se limitada. Lúcifer como um espelho do tempo, pode apenas refletir aquilo que se encontra diante de sua superfície polida, e mesmo assim em linhas gerais; mais ainda esses quadros passageiros de violentos contrastes – diga-se da vida herética e cristã; da multidão de frívolos e restritos grupos de místicos.

            Ave, por onde nos voltamos, leste, oeste, norte ou sul, existe apenas um contraste de exteriorização; quer se observe a vida entre os cristãos ou pagãos, entre homens religiosos ou não, em todo o lugar encontra-se a pessoa lidando com o homem, homem mascarado – mas apenas HOMEM. Apesar do cumprimento dos séculos e décadas de idades caírem do colo do tempo, e grandes reformas acontecerem, impérios crescerem, caírem e crescerem de novo, e até raças inteiras desaparecerem diante da marcha triunfante da civilização, em seu egoísmo aterrador o “homem” que era é o “homem” que é – julgado por seu elemento representativo, o público, e especialmente a sociedade. Mas temos nós o direito de julgar o homem pelo padrão da verdade superficial desta última? Há um século atrás teríamos respondido com uma negativa. Hoje, devido às rápidas investidas da humanidade em direção à civilização, gerando egoísmo e fazendo com que este permanecesse, nós respondemos decididamente, sim. Hoje todos, especialmente na Inglaterra e América, são este público e esta sociedade, e as exceções apenas comprovam e reforçam a regra. O progresso da humanidade não pode ser resumido pela contagem de unidades especialmente na base de crescimento interno e não externo. Portanto, temos o direito de julgar este progresso pelo padrão público de moralidade em sua maioria: deixando a minoria a presenciar a queda de seus ideais. E o que encontramos? Primeiramente Sociedade – Igreja, Estado e Lei – em conspiração costumeira, unida contra a exposição pública dos resultados da aplicação de tal teste. Deseja que a dita minoria tome a Sociedade e o resto en bloc,¨ com suas melhores roupas, e que não inquiram sobre a podridão social que está por baixo. Através de consentimento comum, fingem adorar um Ideal, um que pode ser, o Fundador de seu Estado de Cristandade; mas também combinam de arrasar e martirizar qualquer unidade pertencente à minoria que tiver a audácia, nesta época de corrupção e não embasamento social, de viver para isto.

             A Sra. Eliza Lynn Linton tem criticado esta hipocrisia, assim como se fosse um chicote de escorpiões, em sua magnífica sátira, A Verdadeira Estória de Joshua Davidson. Este é um livro que de fato todo teosofista pagão assim como cristão, deveria ler. Como infelizmente muitos não o fizeram deixe-nos dizer que ela faz com que seu herói praticamente exemplifique os princípios e imite as virtudes humanas do Fundador da Religião Cristã. O tema não é nem uma caricatura nem uma perversão maliciosa da verdade. Um homem verdadeiro semelhante ao Cristo, cujo coração flui com a terna apaixonante compaixão, tenta reerguer as classes ignorantes e pecadoras, despertando sua espiritualidade sufocada. Por graus, através de uma agonia de sofrimento e perseguição, ele mostra a oca imitação da cristandade popular, assim antecipando por apenas poucos anos o mui sincero Lorde Bispo de Peterborough. Aquecido pelo espírito do código de Jesus, o pobre Joshua Davidson torna-se um Socialista, na época um Communard de Paris; lida com ladrões e prostitutas, para ajudá-los; é perseguido e caçado pelo clero cristão e leigos piedosos, em seu retorno à Inglaterra; e finalmente, pela instigação do altamente respeitável vigário de sua paróquia é pisoteado até a morte na plataforma, sob as botas da multidão enfurecida.

            Isto é talvez, apenas um romance; mesmo assim em sua moral e desenvolvimento gradual da emocionante evolução psicológica é verdadeiro como a vida. Não temos essas realidades de ontem, ainda frescas na mente pública, que a isto alcança? Não temos conhecimento todos nós, de tais homens e mulheres, autodevotados, em nosso meio? Não seguimos todos nós, a carreira de certos indivíduos, semelhante ao Cristo, em aspirações e na prática da caridade, apesar talvez, de negando o Cristo e confrontando a Igreja em intelecto e palavras, que foram vistos como tabus por anos pela sociedade intolerante, clero insolente, e perseguidos por ambos até os últimos limites da lei? Quantos, entre tais vítimas, encontraram justiça e o reconhecimento que mereciam?  Após terem feito o mais nobre trabalho entre os pobres, por anos, enobrecendo a nossa era fria e convencional por sua caridade altruística, eles mesmos sendo abençoados pelos velhos e jovens, amados por todos que sofrem, a recompensa que encontraram foi de verem a si próprio traído e denunciado, aviltado e difamado secretamente por aqueles que não mereciam sequer desatarem os cadarços de seus sapatos – os seguidores de igrejas hipócritas e fariseus, o Sanhedrim do Mundo de Cant!

            Na verdade o Joshua Davidson é um esquema tirado da vida real. Pois, de todos os mais nobres ideais, que atirados praticamente na lama pela moderna sociedade, aquele sustentado pelo Mundo Ocidental como o mais alto e grandioso de todos, é, antes de tudo, o mais maltratado. A vida apregoada no Sermão da Montanha, e os mandamentos deixados à Igreja por seu Mestre, são precisamente aqueles ideais que caíram mais baixo em nossos dias. Todos estes estão esmagados sob o calcanhar dos covardes da casta dos discursivos hipócritas de facto – apesar de sub rosaªentretanto, canto· prevenindo de que eles deviam assim fazer de jure¨ – e falsificações são substituídas em seus lugares.

Tal incidente como a luta de Box no “Clube Pelicano” deixa alguém em séria dúvida. É a moderna Sociedade da Inglaterra conscientemente hipócrita, ou simplesmente, tão desesperançosamente à procura de princípios morais diretores para estar ciente em todas as ocasiões, de seus próprios pecados? De fato a transação pode ser criticada facilmente à luz do decoro meramente convencional. Existe algo estranhamente desdenhoso sobre o estado da lei que persegue com determinação raivosa os humildes criadores de traumas que programam suas brutalidades honestas e persistentes no fundo do galpão de uma casa pública, e deixam respeitosamente intocados os cavalheiros e assistentes que desfilam com seus pugilistas num clube da moda. O campeão oleiro que é posto por seus admiradores a lutar contra um tenaz pedreiro por uns poucos trocados, sabe que a chance de terminar sua batalha está na habilidade com que ele e seus amigos mantenham os arranjos em segredo da polícia. Deixe-os suspeitarem e eles de pronto os perseguirão; deixe-os serem agarrados por este lado da lei e eles certamente serão mandados à prisão. Por outro lado deixe uma associação aristocrática de lutadores premiados, experimentados, organizar uma contenda pugilística, atrás do tênue véu da pretensão de que é uma luta com luvas; então, apesar das luvas por si serem tão finas que as juntas por baixo são capazes de infringir socos quase tão severos em seus efeitos quanto àqueles dos ringues antigos, os procedimentos vem ao encontro da pala da legalidade, e os serviços da polícia podem ser abertamente limitados a manutenção da ordem na vizinhança e de guardar a seleta audiência da mui ansiosa curiosidade da multidão invejosa na rua.

            O texto é um daqueles, no qual ofensas familiares contra os privilégios dos ricos podem ser atiradas em qualquer quantidade. E no caso, diante de nós, o tempo escolhido para o encontro de peso, enfatiza de maneira jocosa o cinismo do acontecimento. Nominalmente, a luta aconteceu na manhã da segunda feira, mas na realidade deu-se no domingo à noite; naquele, que era apenas domingo à tardinha para os comensais atrasados do “Pelicano”. O dia em que uma multitude de encenações duplamente legal e indescritível, devotadas à manutenção do sagrado – às custas de toda recreação saudável e natural para as pessoas, fosse de mente ou físico – foi o dia escolhido pelos lutadores luxuriosos de Soho para a apresentação brutal de que eles se serviam, ao custo enorme que todos nós ouvimos de: 1,000 libras que foram dispostas como recompensa aos combatentes cujo zelo na punição de um ao outro estava assim garantido – ou assim os promotores cristãos e aristocráticos da luta imaginavam – estipulando 800 libras ao homem que saísse vitorioso e apenas 200 libras para o outro. Os homens passavam por um treinamento regular para a luta, como era para ter sido conduzido no sistema sem pretensões dos dias iniciais – e em breve todo o entretenimento era uma luta paga para todas as intenções e propósitos, e se esperava ser muito “bem” contestada. E mesmo que se tenha provado o contrário, foi uma circunstância que dificilmente afetaria qualquer observação que pudéssemos fazer sobre o assunto.

Deixamos as comparações óbvias entre aquela lei que opera em tais assuntos referentes aos pobres, e a outra lei que se acomoda diferenciadamente para os ricos, para serem feitas por críticos que buscam melhorar a ocasião dentro do interesse da agitação política. Não há nenhum princípio particular afetando a região mais alta das morais no fato de que as leis são quase sempre estúpidas e desiguais. Mas existem considerações afetando as recentes lutas pagas que ferem os grandes propósitos da Teosofia. Fora todas as questões da lei, como é possível, perguntamos, como um grande corpo de ingleses educados e de respeitabilidade social, pode achar a promoção de luta paga um entretenimento para seu lazer blasé·, e como as consciências que eles possuem podem permitir tal indulgência? Pois lembrem, é mero abuso sem sentido de qualquer classe ou pessoa dizer que não possui consciência. Podemos assegurar que os membros do “Clube Pelicano” têm todos eles códigos de honra, de uma maneira ou outra, que eles respeitam de certa forma, na qual suas consciências, mesmo que distorcidas pelo costume, o proibirão de ultrapassarem. E se uma luta contratada num entardecer do domingo, entra dentro do esquema de entretenimentos que a eles parece ser permissível, isto é devido ao fato de que os princípios morais realmente enraizados em seus pensamentos não se opõem a isto; nem achamos errado o dia escolhido, mas simplesmente por tal entretenimento seja em que dia for. Para eles, entretanto, filhos de famílias protestantes, existem quebra e desrespeito a dois ideais implicados. Com todos eles, provavelmente, seus princípios bloquearão o caminho do roubo em jogo de cartas ou no de agressão a mulheres. O problema não está na razão de que seus princípios sejam fracos ou que suas consciências obscuras, até onde diz respeito ao código de honra dos círculos a que pertencem; mas sim, é que todo o esquema de ensinamento moral no qual foram criados está degradado, imperfeito e é acima de tudo materialístico. A tão falada religião, à qual eles nominalmente pertencem, tem dificilmente contribuído para alguma formação daquele código. De fato não parece favorável em dia de domingo, lutas contratadas, mesmo assim não tem suficiente vitalidade para reforçar suas idéias nos corações ou vidas de seus desatenciosos aderentes.  O grande escândalo da religião moderna como regra de vida está, levando em consideração a Sociedade moderna de maneira ampla, em que não recomenda nenhuma atenção sequer. Falhou não tanto em mostrar o que deve ser feito ou deixado de fazer – pois até as máximas da igreja dentro do limite das palavras, cobre bastante do terreno – como tem falhado em mostrar com qualquer força adequada o porque que isto ou aquilo deve ser um princípio diretor. A igreja moderna, de fato, destruiu-se como agente prático no governo dos atos de seus seguidores – i.e., dos milhões que se contentam de serem chamados de seus seguidores, mas que nunca sonharam em ouvir uma palavra do que diz.

            Plenamente conscientes de que a grande maioria que diz ser muito boa, seus expoentes (moderadamente ignorantes de quão mal se encontra uma grande parte do restante) pensam que é devido à perversidade da humanidade que as pessoas, como um todo, não são melhores do que são. Nunca compreendem que elas próprias – o Monopólio Seco dos vinhos sociais – são o verdadeiro culpado, por terem divorciado os códigos bons de morais, doados a elas pelas religiões de todos os tempos, das sanções fundamentais com que a apreciação correta da ciência espiritual verdadeira a eles se ligariam. Converteram o ensinamento divino que é a Teosofia de todas as eras em uma caricatura grosseira, e esperam encontrar em seus ecos papagaios de credos absurdos um grito que traçará as linhas mestras para seu desdobramento, um apelo que os moverá em direção à sublime tarefa de espiritualização de suas próprias naturezas. Falham em ver que o mandamento de amar um ao outro se torna sem efeito ao lidar com pessoas cuja concepção total de futuro se volta para as chances de tirar um número sorteado na loteria dos eleitos, ou de burlar a punição que seria naturalmente seu merecimento, num momento feliz quando a mente divina pudesse ser tirada de seu equilíbrio por refletir a beleza do sacrifício cristão. Os professores da religião moderna, de fato, perderam contato com a sabedoria que permeia suas própria doutrinas pervertidas, e os seguidores cegos desses líderes cegos perderam contato até com os princípios elementares de moralidade física que as igrejas continuam a repetir, sem compreenderem seu propósito, e apenas pela força do hábito. Os ministros da religião, em resumo, do Século Dezenove, têm comido as uvas amargas da ignorância, e os dentes de suas desafortunadas crianças ficaram comprometidos. Certamente houve uma boa dose de mal Karma criado no “Clube Pelicano” na tarde da celebrada luta contratada, mas nem mesmo uma pequena parte dele foi levada para a conta dos pastores abandonados que idealmente e ignorantemente deixaram escorregar suas oportunidades douradas por sobre toda a cidade aquela manhã, assim como em todas as outras, e deixaram suas congregações imóveis sem qualquer pensamento que os pudesse ajudar a realizar o como podiam sair das igrejas para o mundo de novo quando ao término do serviço, e contribuir em cada ato e exemplo de suas vidas para a formação de seus próprios destinos e a cristalização em seu próprio futuro das aspirações e desejos que pudessem encorajar.

De todos os belos ideais do passado, aquele sentimento religioso verdadeiro que se manifesta na adoração da beleza espiritual apenas, e o amor à simples verdade, são aqueles que foram lidados de modo mais rude nesta era de simulação obrigatória. Estamos cercados por todos os lados pela Hipocrisia, e aqueles entre seus seguidores que Pollok tem dito que foram homens:

“Que roubaram a doação da corte dos céus,

Para nela servir o diabo,”

 Ó, hipocrisia inominável de nossa era! A era onde tudo sob o Sol e a Lua está para ser vendido ou comprado. A era quando tudo que é honesto, justo, de mente nobre, é exposto para a especulação do público, para ser fustigado, e depreciado; quando cada homem amante da verdade e destemidamente discursivo sobre ela é marginalizado da polida Sociedade, como um transgressor das tradições culturais que demanda onde cada membro desta deve aceitar aquilo que não acredita, dizer o que não pensa, e mentir para sua própria alma! A era, onde a posse aberta de qualquer dos grandes ideais do Passado é tratada como excentricidade quase insana ou fraude; e a rejeição da forma vazia – a letra morta que mata – e a preferência pelo Espírito “que nos doa vida” – é chamada de infidelidade, e logo então o grito inicia, “Apedrejai-o até a morte!” Não tão breve é o sacrifício das convenções vazias, que busca recompensa e benefício apenas para o eu, realizado no sentido de praticamente desenvolver alguma grande idéia humanitária que ajudará as massas, então um lamento de indignação e intenso horror são levantados: as portas da Sociedade da moda são fechadas em cima do transgressor, e as bocas de impropérios aviltantes abertas para desonrar seu próprio nome.

Assim, somos diariamente servidos de discursos santificantes sobre as bênçãos conferidas pela civilização cristã e as vantagens oferecidas por ambas, em contraste com as maldições de “ateísmo” e as superstições e horrores de digamos – na Idade Média. A Inquisição com a sua queima de bruxas e hereges, suas torturas nas estacas e câmaras, são contrastadas com a grande liberdade do pensamento moderno, por um lado, e a segurança de vida e propriedade humanas de agora, comparadas com a insegurança dos antigos dias. “Não foi a civilização que aboliu a Inquisição e agora oferece ao mendigo a mesma proteção da lei como ao rico duque?” nos perguntam. “Não sabemos”, respondemos. A História nos faz pensar de que foi Napoleão Primeiro, o Átila cujas guerras imorais privaram França e Europa de uma humanidade florescente, que aboliu a Inquisição, e isto não para o bem da civilização, mas porque não estava preparado para permitir a Igreja queimar e torturar aqueles que podiam servir a ele como chair à canon¨. Em relação à segunda proposição no que diz respeito ao mendigo e ao duque, devemos qualificá-la antes de aceitá-la como verdade. O mendigo, mesmo que do lado da verdade, dificilmente encontrará a plena justiça como o duque o fará; e se acontecer ser impopular, ou um herege, dez para um que ele achará o reverso da justiça. Isto prova que se a Igreja e o Estado eram anticristãos então, eles o são ainda, se não agora ainda mais.

Cristandade e civilização verdadeiras, ambas necessitam se opor ao assassinato, mesmo que legal. E, no entanto, encontramos na última metade de nosso século que se despede, mais vidas sacrificadas – por causa da melhoria no sistema de armas e guerras, graças ao progresso da ciência e civilização – do que se deu na primeira metade. “Civilização cristã”, de fato! Civilização, talvez; mas porque “Cristã”? Por acaso o Papa Leão XIII a personificou quando em agonia de desespero trancou-se no dia em que o monumento de Bruno foi desvelado, e marcado como o dies irae¨ na História da Igreja? Mas não podemos nos voltar apenas à civilização, pura e simplesmente? “Nossas maneiras, nossa civilização”, diz Burke, “e todas as coisas boas ligadas às maneiras. …têm neste mundo europeu nosso, se baseado por eras em dois princípios. …me refiro ao espírito dos cavalheiros e ao espírito da religião.” Estamos bem ansiosos para testar o caráter da era por esses ideais. Somente, tem sido sempre difícil dizer qual definição a dar ao termo “cavalheiro”; quanto à religião, noventa e nove entre cem pessoas que encontramos se forem perguntadas, replicarão de tal modo a tornar claro que elas confundiram religião com teologia. A definição do dicionário de “cavalheiro” é de um homem bem nascido, “de maneiras gentis e refinadas, e que cria condições”; um “fazendeiro cavalheiro” é aquele que trabalha seu próprio estado, um “porteiro cavalheiro” um impagável em ser obsequioso. Mas isto dificilmente acontecerá. Pois quantos não existem, no círculo mais aristocrático, com dezenas de galões nos braços, que se encontram num grau de vício e depravação, cujo paralelo não devemos buscar no Whitechapel, mas, na Roma dos Césares. Em comparação com os vícios destes, a Odisséia no “Clube Pelicano” pode ser vista como escapada infantil de escolares.

Nada disso, se a verdade é para ser dita, os hábitos dos Filhos Reais e Herdeiros Imperiais Incontestáveis são quase sempre indescritivelmente imorais e não civilizados. A fonte da honra, invés de suprir com água pura, flui com a podridão moral. Com tais exemplos como esses, podemos refletir para com o desrespeito demonstrado por poucas estrelas por ideais menores? Nossos “Admiráveis Espadachins” de hoje, batem em espadas sob medida, e emprestam a honra dos braços à dividendos em obscuras companhias que manipulam na Bolsa. O moderno trovador canta não mais sob o balcão de sua amada, nem defende sua honra nas contendas da cavalaria; mas quando desprezado, escreve o nome dela na lista dos réus nos casos de pequenas infrações, e demanda de um júri que cubra os danos substanciais em libras. Os louros de “honra” dados nos antigos dias pelo salvamento de uma vida humana com risco próprio, por nobres feitos de valor e heroísmo adquiridos, são agora freqüentemente reservados àqueles que triunfam no campo de batalha sem sangue, da luta e direcionamento comerciais; e grandes “medalhas de ouro de Honra” (?!) estão agora sendo dadas ao monte de proprietários de fósforos, pílulas e sabões. Ó sombras de Leônidas de Esparta, de Sólon e Péricles, velem suas faces astrais! Regozijais, vós larvae·  dos muitos bem casados Salomão e trocadores de dinheiro do Templo! E céus, patifes imperiais, Calígula, Constantino e Césares conquistadores do mundo, olhem suas caricaturas nos Sérvios e outros tronos. As garras dos leões reais do século XIX estão cortadas e seus dentes extraídos; assim mesmo tentam estimular os seus vícios históricos com sua maneira humilde, suficientemente bem por terem perdido há muito tempo todo o clamor para serem vistos como “ungidos pelo Senhor”, para serem reverenciados, elogiados e estimulados por suas respectivas igrejas. No entanto eles o são. Que farsa sem paralelo!

Mas talvez devamos procurar pela verdadeira Cristandade e verdadeira civilização e cultura nas modernas e mais altas cortes da Lei? Céus existem juizes modernos de quem seu Senhor (nosso Karma) dirá, “Escute o que o injusto juiz disse”. Pois, em nossos dias, o grau de justiça é algumas vezes sussurrado na voz dos intolerantes que sentam no assento de Salomão e julgam como os Inquisidores de antigamente o fizeram. Em nosso século de civilização cristã, juízes tentando se igualar a seus predecessores do tribunal dos filhos de Loiola, empregam os instrumentos mais raros de tortura moral, para insultar e levar ao desespero um indefeso réu. Nisto são ajudados por advogados, quase sempre o típico governante antigo, que, metaforicamente, quebra os ossos do miserável na procura de justiça; ou pior ainda, amaldiçoa seu bom nome e o apunhala no coração com os impropérios mais vilipendiosos, suposições falsas inventadas na ocasião, mas, que a vítima sabe que se tornarão então verdades atuais em boca de intriga tola e injuriosa. Entre as torturas brutais da anticristã Inquisição de antigamente e as mais refinadas torturas mentais de sua cópia, que como ela tão anticristã, mas muito mais civilizada – nossa Corte e seus truculentos examinadores, a palma da “gentileza” e caridade poderia muito bem ser dada à primeira.

Assim encontramos todo ideal antigo, moral e espiritual, rebaixado para que possa corresponder com a presente baixa moral e concepções não espiritualizadas do público. Brutalizados por uma fome psíquica que se manteve por gerações, eles estão prontos a servir todo ideal espiritual Regenerador como alimento para cães, enquanto como seus protótipos debochados, a populaça Romana sob Nero, Calígula, e Heliogabalus, lotam para ver as brigas de touros em Paris, onde, os cavalos feridos desfilam seus membros sangrando pela arena, Almehs importadas dançando suas repulsivas danse du ventre§, pugilistas brancos e negros transformando o rosto de cada um em uma massa sanguinolenta, e “levantando o telhado” com seus gritos, quando os Sansãos e Sandows arrebentavam correntes e partiam os fios ao expandirem seus músculos pretensamente naturais. Porque manter a velha farsa por mais tempo? Porque não mudar a cançoneta de Natal assim:

Gladiator natus hodie.©

            Ou mudar o bem conhecido dizer depois dessa moda para:

“GLÓRIA AO OURO NAS ALTURAS,

E LUTA NA TERRA, PARA COM OS HOMENS DE MÁ VONTADE”.

            Transmutar o deus da era “não civilizada” por ouro (em inglês god por gold) da presente era cultural, necessita apenas a adição de um “l”: algo simples para essa geração de idólatras que adoram as moedas de seus respectivos mundos, como a personificação concreta de seu mais alto ideal.

            Avante! Estamos preparados a oferecer uma dádiva à Sociedade com nossos melhores cumprimentos, de todos os mais finos Europeus “cavalheiros” e campeões cristãos de nosso século – o século da civilização de mofa e também do cristianismo. Como muitos dos primeiros não tem escrúpulo em roubar seus comerciantes trabalhadores fora de suas profissões para pagar suas dívidas de jogatina, muitos dos segundos, não hesitam em receber sob falsos pretextos amplas “coleções” e vivências pessoais, de tão confidente rebanho. Pois quem poderá negar que eles os atiçam a trocar sua parcela mundana por notas promissórias tornadas pagáveis em um estado post mortem§ do qual, eles mesmos, nada sabem e no qual muitos deles nem acreditam? Nada poderia ser melhor então do que um muro construído em volta do Mayfair, transformado-se assim num moderno Parc aux Cerfs¨ e num Campo de Moisés combinados, para o confinamento dos modernos Bayards, preux chevaliers· sem reprovação ou medo, e os modernos Fariseus ambos típicos da gloriosa civilização Cristã com seu ideal divino de Humanidade culta e convertida. Pois então e só então poderíamos nós Teosofistas e qualquer outro cidadão decente estarmos livres para nos ligarmos, sem sermos molestados, com aqueles que são chamados “pecadores e publicanos”¨ideal preferivelmente às formas mortas de seus superiores eclesiásticos. pela moderna “Sinagoga dos Jesuítas” – com os Joshua Davidsons de Whitechapel. Nem mesmo as massas das almas verdadeiramente religiosas sairiam perdedoras, fossem elas deixadas apenas ao cuidado dos poucos sacerdotes e clérigos verdadeiramente cristãos que conhecemos; aqueles que agora vivem no medo diário de serem obrigados a comparecer em seu julgamento diante de seus bispos e igrejas pelo crime imperdoável de servir seu MESTRE

VISÕES TEOSÓFICAS SOBRE O PRECEDENTE

            Num mundo de ilusão onde a lei da evolução opera, nada pode ser mais natural do que os ideais do Homem – como uma unidade do total, ou humanidade, deveriam para sempre estar se modificando. Uma parte da Natureza em volta dele, composta de prótons, sempre mutável Natureza, em que cada partícula está eternamente se transformando, enquanto o corpo harmonioso permanece um todo sempre o mesmo, como essas partículas o homem está continuamente mudando fisicamente, intelectualmente, moralmente, espiritualmente. Num tempo, ele encontra-se no ponto mais alto do ciclo do desenvolvimento; e em outro, no mais baixo. E, ele assim alternativamente sobe e desce, e sua natureza moral responsivamente se expande e se contrai, assim também seu código de moral ora corporifica os ideais de aspirações mais nobres e altruístas, ora a consciência dirigente será apenas o reflexo do egoísmo, brutalidade e descrença. Mas isto, entretanto, é apenas no plano externo, ilusório. No interno, ou melhor, na constituição essencial, ambos, natureza e homem são um, assim como suas essências são idênticas. Tudo cresce e desenvolve-se e luta para aperfeiçoar-se nos primeiros planos externos, ou, como bem dito por um filósofo que é um – “eterno vir-a-ser”; mas no plano último da essência espiritual tudo É, e permanece, portanto imutável. É em direção a esse eterno ESSE (Ser) que tudo, assim como cada ser, está gravitando, gradualmente, quase que imperceptivelmente, mas tão seguro quanto o Universo de estrelas e mundos se move para um ponto misterioso conhecido, mas ainda assim não denominado pela astronomia e chamado pelos Ocultistas – de o Sol Espiritual central.

            Daí, ter sido demarcado em quase toda a era histórica um grande intervalo, quase um cisma, colocado entre a perfeição prática e a ideal. Portanto, de tempo em tempo certos grandes caracteres aparecem na terra e ensinam a humanidade a olhar sob o véu da ilusão, e o homem aprende que o golfo não era impassível; que está nas mãos da humanidade através de raças superiores e espirituais preencher o grande “gap” (intervalo) mais e mais em cada ciclo vindouro; pois cada homem, como uma unidade, isto tem em seu poder, de acrescentar seu mito para o preencher. Sim; existem ainda homens, que, não levando em conta a presente e caótica situação do mundo moral, e os pobres débrisª dos melhores ideais humanos, persistem em acreditar e ensinar de que o agora ideal de perfeição humano não é um sonho, mas uma lei da natureza divina; e para isto, vai ter a Humanidade que esperar, até por milhões de anos, para que um dia possa alcançá-lo e retornar a ser a raça de deuses.

             Enquanto isso, a ascensão e queda do caráter humano nos planos externos acontecem agora, como o faziam antes, e a média de percepção do homem comum é muito fraca para ver que ambos os processos ocorrem cada vez num plano mais alto que o precedente. Mas como tais trocas não são sempre trabalhos de séculos, pois quase sempre mudanças extremas são realizadas por rápidas forças atuantes – por exemplo, guerras, especulações, epidemias, devastação dos famintos ou do fanatismo religioso – por causa disso, podem as massas cegas imaginar que o homem foi, é, e será o mesmo. Para os nossos olhos, de toupeiras, a humanidade é como nosso globo – aparentemente estacionária. No entanto, ambos se movem no espaço e tempo com igual velocidade, em torno de si mesmos e – para diante.

            Mais ainda, qualquer que seja o nível de sua evolução, desde o nascimento de sua consciência, de fato, o homem foi, e ainda é, o veículo do espírito dual que nele se encontra – bem e mal. Como as irmãs gêmeas do grandioso poema póstumo de Vitor Hugo, La Fin de Satan¨ – os descendentes nascem respectivamente da Luz e da Escuridão – o anjo “Liberdade” e o anjo “Ísis-Lilith”escolheram o homem como seu repositório na terra, e estes estão em luta eterna nele.

As Igrejas falam ao mundo que o “homem nasceu em pecado”, e João (1A. Epístola iii.8) acrescenta que “Aquele que comete pecado é do demônio; pois o demônio é pecador desde o início”. Aqueles que ainda acreditam na fábula da costela-e-maçã e no anjo rebelde “Satã” acreditam, como derivativo, num Demônio pessoal – e como contraste numa religião dualística – e em um Deus pessoal. Nós Teosofistas da escola Oriental, neles não acreditamos. No entanto, avançamos ainda mais do que a letra morta Bíblica. Pois dizemos que como Entidades extras cósmicas, não existe nem bem nem mal, e que ambos jamais existiram. E acrescentamos que ambos lidam na terra no homem, sendo na verdade, o próprio homem, que é, como um ser físico, o demônio, o verdadeiro veículo do mal, e como entidade espiritual – deus ou bem. Daí ser dito à Humanidade “aquela que tem o demônio”, e isto é sussurrar como verdade metafísica como quando dizendo a todos os homens, “Não sabeis que deus está em vós?” As afirmações são ambas verdadeiras. Mas, estamos no ponto de virada do grande ciclo social, e é o primeiro fato que exerce mais força no presente. Entretanto, parafraseando um texto Paulino – de que “existirão inúmeros diabos. . . .no entanto apenas um Satã,” então enquanto temos grande variedade de diabos constituindo a humanidade coletivamente, os tais caracteres grandiosamente satânicos como os pintados por Milton, Byron e recentemente por Vitor Hugo, existem poucos, se até alguns. Daí, devido a tal mediocridade, estão os ideais humanos caindo, sem serem substituídos; uma vida prosaica como morte espiritual como o fog (névoa) de novembro em Londres, e como o conviver com o materialismo brutal e vícios e os sete pecados capitais formando apenas uma porção deste, como aquele fog que possui micróbios perigosos. Agora raramente encontramos aspirações que nos levam ao eterno ideal dentro do coração humano, mas em vez disso um único pensamento tendendo para a idéia central de nosso século, o grande “Eu”, o auto-ser para cada um o centro poderoso em torno do qual todo o Universo é feito para girar e desenvolver.

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Quando o Imperador Juliano – chamado de Apóstata por haver acreditado em ideais grandiosos de seus ancestrais, os Iniciados, não aceitava a forma humana antropomórfica – e viu pela última vez seus deuses amados aparecerem para ele, chorou. Ave, eles não eram mais os seres espiritualmente brilhantes que ele havia adorado, mas apenas as sombras decrépitas, pálidas dos deuses que havia tanto amado. Quem sabe fossem talvez a visão profética do término dos ideais de sua era, e também de nosso próprio ciclo. Esses “deuses” são agora vistos pela Igreja como demônios e assim chamados; enquanto aquele que preservou um poético e persistente amor por eles é antes de tudo tachado como Anticristo e um Satã moderno.

Bem, Satã é um termo elástico, e ninguém tem ao menos uma definição aproximada, lógica para a significação simbólica do nome. O primeiro a antropomorfizá-lo foi John Milton; ele é seu verdadeiro pai intelectual, assim como é amplamente aceito que o Satã teológico da Queda é o “Filho nascido da mente” do poeta cego. Despido de seus atributos dogmáticos e teológicos Satã é simplesmente um adversário – não necessariamente um “arquidemônio” ou um “perseguidor de homens” mas possivelmente um parceiro do mal. Ele pode se tornar um Salvador dos oprimidos, um campeão dos fracos e pobres, esmagado pelos diabos menores (homens), os demônios da avareza, egoísmo e hipocrisia. Michelet o denomina de “Grande Deserdado” e o toma em seu coração. O gigante Satã do conceito poético é, na realidade, apenas o composto de toda a intelectualidade nobre e insatisfeita da era. Mas Vitor Hugo foi o primeiro a intuitivamente alcançar a verdade oculta. Em seu poema, com este nome, Satã, é uma Entidade verdadeiramente grandiosa, com bastante de humano nele para torna-lo ao alcance dos intelectos médios. Para realizar os Satãs de Milton e Byron é como tentar alcançar uma mão repleta de névoa matutina: não existe nada de humano neles. O Satã de Milton guerreia com os anjos que são um tipo de marionetes voadoras, sem espontaneidade, colocados no palco do ser e da ação pelo invisível fio da predestinação teológica. O Lúcifer de Hugo luta uma batalha amedrontadora com suas próprias e terríveis paixões e de novo se torna um Arcanjo de Luz, após as mais horríveis agonias concebidas certa vez pela mente mortal e descritas pela pena humana.

            Todos os outros satânicos ideais empalidecem diante de seu esplendor. O Mephisto de Goethe é um verdadeiro diabo da teologia; o Ahriman· do Manfred de Byron – um caráter bastante sobrenatural, e mesmo ele, Manfred tem pouco a ver com o elemento humano, grandioso como foi o gênio de seu Criador. Todas essas imagens pálidas diante do Satã de Hugo, que ama tão fortemente como odeia. Manfred e Caim são os Protestos encarnados no caminho de descida da individualidade, perseguidos e errados contra o “Mundo” e a “Sociedade” – esses gigantes inimigos e monstros selvagens da injustiça coletiva. Manfred é a representação típica da vontade indomável e orgulho não ligado a influência alguma, ou terrena ou divina, valorizando sua plena e absoluta liberdade de ação acima de qualquer sentimento emocional ou consideração social, superior à Natureza e tudo que ela abarca. Mas, em Manfred assim como Caim, o Self, o “Eu” é muito enfatizado; e neles não existe uma fagulha sequer do amor redentor, não mais que de medo. Manfred não se submeterá nem mesmo ao universal Espírito do Mal; sozinho, e face a face com o oponente sombrio de Ahura-Mazda – Luz Universal – Ahriman e seus convidados incontáveis da Escuridão, ele ainda se mantém. Esses tipos despertam em alguém intensa imaginação, espanto reverencial por seu sempre desafiante comportamento, mas não despertam nenhuns sentimentos humanos: eles são ideais muito sobrenaturais. Byron nunca pensou em vivificar seu Arcanjo com aquela fagulha imorredoura de amor que forma – nego, que deve formar a essência do “Primeiro Nascido” da essência homogênea de eterna Harmonia e Luz, e é o elemento de reconciliação de desculpa, mesmo em sua (de acordo com nossa filosofia) última criação terrestre – a Humanidade. A discórdia é concomitante à diferenciação, e Satã sendo uma evolução, deve neste sentido, ser um adversário, um contraste, sendo um tipo de matéria Caótica. A essência de amor não pode se extinguir, mas, apenas ser pervertida. Sem este poder salvador e redentor, corporificado em Satã, ele simplesmente aparece como uma falha sem sentido da imbecilidade onipotente e onisciente que os oponentes da Cristandade teológica constantemente e muito justamente o tornam; com isso, ele se torna uma Entidade Pensante, os Asuras§ dos mitos Purânicos·, o primeiro dos alentos de Brahma, que depois de terem lutado contra os deuses e os vencido são finalmente vencidos e atirados à terra para se encarnarem na Humanidade. Assim a Humanidade Satânica se torna compreensível. Após mover-se em torno de seu círculo de obstáculos ele pode, com as experiências acumuladas, após todas as agonias da Humanidade, emergir de novo para a Luz – como a filosofia Oriental ensina.

Se Hugo tivesse vivido para completar seu poema, possivelmente com visões mais fortalecidas, ele teria rotulado seu conceito Satânico com àquele das raças Arianas que faz com que todos os poderes menores, bem ou mal, nasçam no início e morram ao fechamento de cada “Era Divina”. Como a natureza humana é sempre a mesma, e a evolução intelectual, espiritual e sociológica, é uma questão de passo a passo, é bem possível que ao invés de atingir a metade do ideal Satânico como Hugo fez, o próximo grande poeta o atinja no total: discursando para sua geração a eterna idéia do equilíbrio Cósmico tão nobremente enfatizada na mitologia Ariana. A primeira metade daquele ideal aproxima-se suficientemente ao ideal humano de tornar as torturas morais do Satã de Hugo inteiramente compreensíveis ao Teosofista Oriental. Qual é o tormento principal deste grande Anarquista Cósmico? É a agonia moral causada por tal dualidade da natureza – o rasgamento em dois lados contrários, do Espírito do Mal e Oposição, do elemento imorredor do amor primevo no Arcanjo. Esta fagulha de amor divino por Luz e Harmonia, que nenhum Ódio pode, como um todo, diminuir, causa a ele uma tortura muito mais insuportável do que sua Queda e exílio por protesto e Rebelião. Esta radiante fagulha dos céus brilhando de Satã na negra escuridão de seu reino de noite moral, o torna visível para o leitor intuitivo. Fez com que Vitor Hugo o visse soluçando em desespero sobre-humano, e cada poderoso soluço sacudindo a terra de pólo a pólo; soluços, primeiro de raiva abafada, pois não podia extirpar o amor pela Bondade (Deus) divina de sua natureza; depois alterando num lamento de desespero, por ser cortado daquele amor divino que ele tanto desejava. Tudo isto é intensamente humano. Esse abismo de desespero é a salvação de Satã. Em sua Queda, deixando cair uma pena de sua branca e certa vez imaculada asa, esta é iluminada por um raio de radiância divina e transformada em um Ser brilhante, o ANJO DA LIBERDADE. Portanto, ela é a filha de Satã, a criança da união de Deus e o Arcanjo Caído, a prole do Bem e do Mal, da Luz e da Escuridão, e Deus reconhece essa comum e “sublime paternidade” que os une. É a filha de Satã que o salva. No auge do desespero sentindo-se odiado pela LUZ, Satã escuta as divinas palavras “Não; Eu não vos odeio”. Assim disse a voz, “Um anjo está entre nós, e as suas ações vão para vosso crédito. O Homem, limitado por vós, por ela está agora liberado.”

“O Satan, tu peux dire à présent; je vivrai!

Viens; l’Anje de Liberte, c’est ta fille et la mienne

Cette paternité sublime nous unit!”ª

A concepção toda é uma florescência de ideação metafísica. Este lótus branco de pensamento brota agora, como em eras passadas, da decomposição do mundo de matéria, gerando Protesto e LIBERDADE. Está brotando em nosso próprio meio e bem debaixo de nossos olhos, do mito da civilização moderna, berço fecundo de virtudes contrastantes. Neste sólido árido os germens espalharam-se, e mais tarde deram origem a protestantes que Tudo negam, Ateístas, Niilistas e Anarquistas, homens do Terror. Mau, violento, criminoso algum deles pode ser, no entanto, nenhum deles pode se arvorar como cópia de Satã; mas se tomarmos esta porção da humanidade de coração partido, desesperançosa e amargurada, coletivamente, ela é o próprio Satã; pois ele é a síntese ideal de todas as forças discordantes e cada vício ou paixão humana, em separado, é apenas um átomo de sua totalidade. Nas profundezas do coração dessa totalidade Satânica HUMANA arde a divina chama, e assim todas as negações ficarão sem efeito. É chamada de AMOR PELA HUMANIDADE, uma aspiração ardente pelo reinado universal de Justiça – daí um latente desejo por luz, harmonia e bondade. Onde acharemos tal divina chama, entre os orgulhosos e os ricos?  Na Sociedade respeitável e na correta e ortodoxa, tão chamada porção religiosa do público, acha-se um sentimento predominante de egoísmo e uma busca por riqueza mesmo que com o custo dos fracos e destituídos, daí como conseqüência, indiferença para com a injustiça e o mal. Antes de Satã, o incarnado PROTESTO, reunia e arrependia-se com seus companheiros em uma única Fraternidade, assim todo o motivo de protesto deveria ter desaparecido da terra. E isto na verdade só passará quando a Tristeza, Orgulho e Preconceito tiverem desaparecido diante dos elementos do Altruísmo e Justiça para todos. A Soltura, ou Liberdade, agora, é apenas vã palavra, sobre todo o globo civilizado; liberdade, um sinônimo usado para opressão do povo em nome do povo, e existe para as castas, nunca para as unidades. Para fazer reinar a liberdade como aquela contemplada pelo Satã de Hugo, o “Anjo da Liberdade” tem que renascer simultaneamente pelo amor em comum e pelo consentimento da casta “superior” mais abastada, e das classes “inferiores” – os pobres; melhor dizendo, se tornar o progênito de “Deus” e “Satã”, e por isso reconciliando os dois.

            Mas isto é uma Utopia – para o presente. Não poderá acontecer até que a casta do moderno Levita e sua teologia – o fruto do mar-Morto da Espiritualidade – tenha desaparecido; e os sacerdotes do Futuro tiverem declarado diante de todo o mundo nas palavras de seu “Deus” –

“Et j’efface la nuit sinistre, et rien n’en reste.

Satan est mort; renais, ô LUCIFER CÉLESTE !”§

 

                                                                               H.P.B.

                                                         (“Collected Writings” Vol. XII pp. 33-52)


· A organização completa e final da S.T. deu-se no dia 17 de novembro de 1875 em Nova York.

¨ en bloc- como um todo.

ª sob rosas, de maneira disfarçada.

· canto, jargão, cantilena, discurso hipócrita

¨ por direito

· indiferente, desgostoso de tudo

¨ “Bucha de canhão” significa ir à frente da batalha para confundir o inimigo, se expondo ao perigo.

¨ O dia da ira

· larva,ae – homem estúpido, fantasma, espectro, alma do inferno.

§ dança do ventre

© O gladiador nascido hoje.

§ após a morte

¨ Parque dos Cervos

· Nobre admitido na ordem da cavalaria da Idade Média: le chevalier Bayard.

¨ publicano, s. m. – cobrador de rendimentos públicos, na Roma antiga; homem de negócio.

ª débris- n.m. (de briser) pedaço de uma coisa arrebentada, destruída em parte, caco

¨ O Fim de Satã

· personagem sinistro do livro de Byron, Manfred

§ Asuras, forças, não pessoais que trabalham do lado negativo, os opostos polares das forças positivas.

· Purânicos, adj. de Puranas, escrituras mais populares Hindus onde narram mitos e outros significados simbólicos importantes.

ª “Ó Satã, podes agora dizer; eu vivo!

    Venha; o Anjo da Liberdade, é a tua filha e a minha

    Esta paternidade sublime nos une!”

§ E eu desfaço a noite sinistra, e disto nada resta.

   Satã está morto; renascei, ó Lúcifer Celeste!

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