Por Uma Rede de Holopráxis

Um Sistema Multidimensional de Estímulo ao Auto-aperfeiçoamento

Carlos Cardoso Aveline

Será útil criar na Unipaz um sistema coletivo  e multidimensional de estímulos à holopráxis, ao autotreinamento, à autodisciplina, ao processo de aprender a aprender?  Será oportuno e necessário? 

Os perigos de falar em paz. No livro Terapeutas do Deserto, Jean-Yves Leloup conta uma conversa que teve com o deputado Tilden:

 “Refletimos juntos sobre o  fato de nunca ter havido paz na cidade de Jerusalém, que é um lugar do mundo cujo nome quer dizer `cidade da paz’, cidade do Shalom. Por isso, creio que é muito perigoso chamar um lugar `Cidade da Paz’ (risos no auditório).  Há uma lei taoísta que postula que cada coisa atrai o seu contrário.  E Heráclito também nos fala que cada coisa se transforma em seu contrário.  Podemos observar isso em nossa vida diária quando, por exemplo, nos encolerizamos com alguém e, após termos expressado esta cólera, somos invadidos por uma grande ternura, como se passássemos de um oposto a outro. Falar muito de luz atrai muita sombra. É pena que Leonardo [Boff] não esteja aqui para nos falar da sombra em São Francisco de Assis. Porque todo ser de luz tem uma sombra. Nós já dissemos que o sinal da verdadeira experiência experiência interior, quando a luz se revela a nós, é a descoberta de pontos de sombra em nós mesmos. Amamos estar ofuscados pela luz mas não amamos a sombra em nós”.     

Realmente, no Tao Te King, o mais famoso dos clássicos taoístas,  há uma vigorosa denúncia das idealizações que são expressas em palavras belas e emocionadas mas nem sempre são acompanhadas dos atos correspondentes. No seu capítulo 18, essa obra atribuída a Lao-tzu afirma, sem meias palavras: 

“Quando o Tao se perde, aparecem a benevolência e a piedade. Quando aparecem a instrução e a moralidade, aparecem os grande hipócritas. Quando as relações familiares não são harmoniosas, fala-se de amor filial e amor paterno. Quando há desordem e confusão nas cidades, se fala de amor à Pátria. Quando se perde o Tao, aparece a falsidade”.  

Como relacionar esse paradoxo com a realidade prática atual da Unipaz e o seu futuro?

Penso nos ensaios cruciais sobre esse problema reunidos em um volume excepcionalmente importante, Ao Encontro da Sombra, organizado por Connie Zweig e Jeremiah Abrams, e publicado pela Cultrix, SP.  E no também  excelente volume Shadows of the Sacred, seeing through spiritual illusions, de Frances Vaughan, Quest Books, EUA, 1995. O tema, naturalmente, não é novo. Ele já é abordado por S. João da Cruz (em A Noite Escura da Alma, além de  Subida do Monte Carmelo e outras obras). Muito antes de João da Cruz, ele aparece na história de Jó, no Velho Testamento. Inúmeros textos clássicos de quase todas as religiões e filosofias abordam os testes inevitáveis de quem define para si uma meta nobre ou pretende elevar uma bandeira altruísta na sociedade em que vive. São Paulo, em Romanos, 7: 18-19, confessa: “Querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com  efeito, não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero”. A mesma questão aparece no Bhagavad-Gita hindu, um clássico da filosofia oriental que é bem mais antigo do que o Novo Testamento. No Gita, Arjuna, o discípulo, pergunta a seu mestre, Krishna: “Mas dize-me, Senhor, que força misteriosa é essa que, muitas vezes, parece obrigar o homem a praticar um mal, até contra a sua vontade?” E Krishna responde: “Esta tentação, Príncipe, é a essência dos desejos que o homem acumulou em si. Ela é o seu maior inimigo, e chama-se paixão [animal] …” A solução, para o Gita, é o autoconhecimento e o autocontrole.

Não pretendo discutir aqui mais amplamente essa questão. Basta propor a idéia de que, para enfrentar esse dilema criativamente no caso da Cidade da Paz e da Rede Unipaz,  um excelente instrumento será a criação de um sistema coletivo, plural, aberto à vida, dinâmico, mas firme, de transmutação constante de sombra em luz. Ou seja, uma rede e um processo vivo e constante de transmutação alquímica de chumbo em ouro, de matéria escura em matéria luminosa, de energia densa em energia pura. A idéia tem uma dimensão pragmática. Trata-se da criação de um campo mórfico  de paz.  É preciso haver uma estrutura interna, sutil, uma estrutura de coração, que torne a Unipaz cada vez mais apta a suportar as poderosas pressões externas provocadas pelo próprio altruísmo da sua proposta e da sua missão. Uma estrutura holográfica, presente sobretudo na luz astral, na egrégora, no akasha.

A idéia é criar um sistema de práticas interiores de auto-aperfeiçoamento individual e coletivo, coerente com a teoria fundamental e com os princípios da Unipaz. Tal rede de ações internas deveria, se aprovada, ser parte do contexto maior que se pode chamar de linha ou tradição iniciática (que é transreligiosa e transdisciplinar). Essa “rede de holopráticas” deverá servir como estrutura sutil de harmonização pessoal e interpessoal, e como  fonte de virtudes internas como coragem e serenidade, força e flexibilidade, responsabilidade e altruísmo. Assim teríamos formulada mais explicitamente uma mística da paz, uma holopráxis (ou holoprática) da mística da paz e da ética para com todos os seres. E esse sentimento de unidade reforçada entre as pessoas da Unipaz,  de um lado, e entre elas e todo o Universo, de outro, deverá dar  o substrato básico para que a enorme simpatia que a idéia da Unipaz inspira em tanta gente possa ser transformada com cada vez mais eficiência em trabalho voluntário organizado, duradouro e frutífero.

Desse modo a Unipaz irá além das três grandes áreas de atuação já tradicionais – cursos pagos,  projetos sociais e rede de paz –  para abrir terreno no campo de uma prática mais profunda, individual e coletiva, da mística da paz.   

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